A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 5

VÁRIAS TEORIAS SOBRE O FUNDAMENTO DA OBRIGAÇÃO MORAL

 

Na discussão dessa questão, vou primeiro declarar o que se entende por fundamento ou base da obrigação. Usarei os termos base e fundamento como sinônimos. A obrigação deve ser fundamentada em alguma razão boa e suficiente. Lembrem-se de que a obrigação moral diz respeito à ação moral. Que ação moral é ação voluntária. Que, propriamente falando, a obrigação diz respeito só às intenções. Que de modo ainda mais estrito, a obrigação diz respeito só à intenção última. Que a intenção ou escolha última, cujos termos uso como sinônimos, consiste em escolher um objeto pelo valor dele mesmo, i.e., por aquilo que é intrínseco no objeto, e por nenhuma razão que não seja intrínseca ao objeto. Que todo objeto de escolha última deve possui-lo e o possui em sua natureza, sua percepção exige a afirmação racional de que deve ser universalmente escolhido pelos agentes morais, pelo próprio valor dele ou, o que seria o mesmo, por ser o que é, ou, em outras palavras ainda, por ser intrinsecamente valioso, e não por conta de suas relações.

A base da obrigação, portanto, é essa razão ou consideração intrínseca à natureza do objeto ou pertencente a ela, que exige a afirmação racional de que deve ser escolhido por méritos próprios. É esse motivo, intrínseco ao objeto, que assim cria a obrigação por exigir essa afirmação.

Por exemplo, tal é a natureza do bem do ser que ela exige a afirmação de que a benevolência é um dever universal.

Em seguida chamarei a atenção para alguns pontos de acordo geral e alguns princípios essencialmente manifestos.

1. No sentido mais estrito e próprio, a obrigação moral só se estende às ações morais.

2. Estritamente falando, estados involuntários da mente não são ações morais.

3. Só as intenções são, propriamente, ações morais.

4. No sentido mais estrito e próprio, só as intenções últimas são ações morais, sendo a intenção última a escolha de um objeto pelo valor dele mesmo ou pelo que é intrínseco ao objeto.

5. Embora, no sentido mais estrito, a obrigação só diga respeito à intenção última, num sentido menos estrito e próprio, a obrigação estende-se à escolha das condições e meios de garantir um fim intrinsecamente valioso e também aos atos executivos realizados no intuito de garantir tal fim. Desse modo, há diferentes formas de obrigação: por exemplo, obrigação de concretizar a escolha última -- escolher as condições e os meios necessários conhecidos -- concretizar volições executivas, etc.

6. Essas diferentes formas de obrigação devem ter diferentes condições. Por exemplo, a agência moral, inclusive a posse das capacidades requeridas, juntamente com o desenvolvimento das idéias do valor intrínseco, de obrigação, de certo e errado, é uma condição de obrigação em sua forma universal, ou seja, obrigação de desejar o bem do ser em geral, pelo valor dele mesmo; enquanto a obrigação de desejar a existência das condições e meios para o fim ou de desenvolver esforços executivos para garantir o fim, ou de realizar esforços executivos para garantir o fim, têm não só as condições acima alistadas, mas a obrigação nessas formas deve ser condicionada, também, ao conhecimento de que há condições e meios, e de quais são eles, e também de que esforços executivos são necessários, possíveis e úteis.

7. O bem-estar de Deus e do universo de existências conscientes e, especialmente, de agentes morais, é intrinsecamente importante ou valioso, e todos os agentes morais têm obrigação de escolhê-lo pelo próprio valor dele. Uma consagração inteira, universal e ininterrupta a esse fim, ou uma benevolência desinteressada é dever de todos os agentes morais.

8. Essa consagração é realmente exigida pela lei de Deus, conforme revelada em dois grandes preceitos estabelecidos por Cristo, e essa benevolência, quando perfeita, é de fato uma concordância com todo o espírito da lei. Isso é correto em si e, por conseguinte, é sempre dever e sempre correto, e isso em todas as circunstâncias possíveis; e, é claro, jamais pode existir, em hipótese alguma, nenhuma obrigação inconsistente com isso. A razão e a revelação concordam nisto: que a lei da benevolência é a lei do direito, a lei da natureza, e nenhuma lei moral, inconsistente com isso, pode existir.

9. A santidade ou obediência à lei moral ou, em outras palavras ainda, a benevolência desinteressada é uma condição natural e, é claro, necessária da existência daquela bem-aventurança que é um bem último ou intrínseco para os agentes morais, devendo ser escolhida por esse motivo, i.e., esse é um motivo suficiente. Obviamente, a base da obrigação de escolher a santidade e de empenhar-se para promovê-la nos outros, como condição do máximo bem-estar do universo, é a natureza intrínseca daquele bem ou bem-estar, e a relação da santidade com esse fim é uma condição da obrigação de escolhê-la como meio para esse fim.

10. A verdade e a conformidade do coração e da vida com todas as verdades conhecidas e práticas são condições e meios do máximo bem do ser. Obviamente, a obrigação de conformar-se a tais verdades é universal, por causa dessa relação entre o bem máximo e a verdade e a conformidade com a verdade. O valor intrínseco do bem deve ser a base e a relação, só uma condição da obrigação.

11. O fim último de Deus, em tudo o que Ele faz ou omite, é o máximo bem-estar dele mesmo e do universo, e em todos os seus atos e dispensações, seu objetivo máximo é a promoção desse fim. Todos os agentes morais devem ter o mesmo objetivo e isso compreende todo o dever deles. Essa intenção ou consagração a esse fim intrínseco e infinitamente valioso é virtude ou santidade em Deus e em todos os agentes morais. Deus é infinita e igualmente santo em todas as coisas porque faz tudo pela mesma razão última, a saber, para promover o máximo bem do ser.

12. Todos os atributos morais de Deus são só muitos atributos de amor ou de benevolência desinteressada; ou seja, são apenas benevolências que existem e são contempladas em diferentes relações. A criação e o governo moral, inclusive a Lei e o Evangelho, juntamente com a inflição de sanções penais, são apenas esforços de benevolência para garantir o máximo bem.

13. Deus requer, em sua Lei e Evangelho, que todos os agentes morais escolham o mesmo fim e façam tudo o que fazem para sua promoção; ou seja, isso deve ser o motivo último de tudo o que fazem. Por conseguinte, toda obrigação resume-se numa obrigação de escolher o máximo bem de Deus e do ser em geral, pelo próprio valor dele, e escolher todas as condições e meios conhecidos desse fim, em favor do fim.

14. O valor intrínseco desse fim é a base dessa obrigação, no que diz respeito a Deus e também a todos os agentes morais em todos os mundos. O valor intrínseco desse fim torna adequado ou correto que Deus requeira dos agentes morais que o escolham pelo valor dele mesmo e, é claro, seu valor intrínseco, e não alguma soberania arbitrária, foi e é sua razão para requerer dos agentes morais que o escolham pelo valor dele mesmo.

15. Seu valor intrínseco conhecido imporia, por si, sobre os agentes morais, a obrigação de escolhê-lo pelo que é, mesmo que Deus jamais o exigisse, ou, se fosse possível uma suposição dessas, se ele o tivesse proibido. Assim, a benevolência desinteressada é um dever universal e invariável. Essa benevolência consiste em desejar o máximo bem do ser, em geral, por ele mesmo, ou, em outras palavras, em inteira consagração a esse bem como o alvo da vida. O valor intrínseco desse bem impõe, pela própria natureza dele, aos agentes morais a obrigação de desejá-lo por ele mesmo e consagrar todo o ser, sem intervalos, à sua promoção.

Assim, é manifesto que o caráter moral pertence à intenção última e que o caráter de um homem é determinado pelo fim para o qual ele vive e se move e tem sua existência. A virtude consiste na consagração ao fim correto, o fim a que Deus se consagra. Esse fim é, pela própria natureza, a base da obrigação. Ou seja, a natureza desse fim é tal que compele a razão de todo agente moral a afirmar que ele deve ser escolhido por si. Esse fim é o bem do ser e, assim, a benevolência desinteressada ou a boa vontade é um dever universal.

Ora, com esses fatos mantidos em mente de modo distinto, passamos a examinar as várias teorias conflitantes e inconsistentes da base da obrigação.

 

Da vontade de Deus como a base da obrigação

Primeiro considerarei a teoria dos que sustentam que a vontade soberana de Deus é a base ou razão maior da obrigação. Eles sustentam que a vontade soberana de Deus cria, e não meramente revela e impõe, a obrigação. A isso respondo:

1. Que a lei moral só legisla diretamente sobre ações voluntárias -- que a obrigação moral diz respeito principal e estritamente à intenção última -- a intenção última consiste em escolher seu objeto pelo próprio valor dele -- que a intenção última deve encontrar suas razões exclusivamente em seu objeto -- que a natureza intrínseca e o valor do objeto deve impor a obrigação de escolhê-lo pelo próprio valor dele -- que, portanto, esse valor intrínseco é a base e a única base possível da obrigação de escolhê-lo pelo próprio valor dele. Seria nosso dever desejar o máximo bem de Deus e do universo, mesmo que Deus não quisesse que tivéssemos esse desejo ou que Ele quisesse que não o tivéssemos. É completamente infundada, pois, a afirmação de que a vontade soberana de Deus é a base da obrigação. Obrigação de fazer o quê? Ora, amar a Deus e ao próximo. Isso é desejar o máximo bem deles. E a vontade de Deus cria essa obrigação? Não estaríamos sob tal obrigação, se Ele não a tivesse ordenado? Devemos desejar esse bem, não pelo valor dele mesmo para Deus e para nosso próximo, mas porque Deus o ordena? A resposta a essas perguntas é por demais óbvia para exigir que se faça mais que anunciá-la. Mas que coerência há em sustentar que a benevolência desinteressada é um dever universal e, ao mesmo tempo, que a vontade soberana de Deus é o fundamento da obrigação? Como alguém pode sustentar, como fazem muitos, que o máximo bem do ser deve ser escolhido pelo próprio valor dele -- que escolhê-lo pelo próprio valor dele é benevolência desinteressada -- que seu valor intrínseco impõe a obrigação de escolhê-lo pelo que é, e que esse valor intrínseco é, portanto, a base da obrigação e, ainda assim, que a vontade de Deus é a base da obrigação?

Ora, se a vontade de Deus for a base da obrigação, então a benevolência desinteressada é pecado. Se a vontade de Deus por si cria, e não meramente revela a obrigação, então a vontade, e não o interesse e o bem-estar de Deus, deve ser escolhida por si e ser o grande alvo da vida. Deus deve estar consagrado à própria vontade, não ao máximo bem dele próprio. Sob essa hipótese, a benevolência em Deus e em todos os seres deve ser pecado. Uma vontade e soberania puramente arbitrárias em Deus possuem, sob essa teoria, maior valor que seu máximo bem-estar e que o máximo bem-estar de todo o universo. Mas observem:

A obrigação moral diz respeito à intenção última ou à escolha de um fim.

O fundamento ou a razão fundamental para escolher um objeto é o que torna obrigatória sua escolha.

Essa razão é o objeto em que a escolha deve terminar, ou não se escolhe o verdadeiro fim. Assim, a razão e o fim são idênticos.

Se, portanto, a vontade de Deus for o fundamento da obrigação, também deve ser o fim último de escolha.

Mas é impossível para nós desejar ou escolher a vontade divina como um fim último. A vontade de Deus revela uma lei, uma regra de escolha ou de intenção. Ela requer que algo seja intentado como um fim último ou por seu valor intrínseco. Esse fim não pode ser em si vontade, mandamento, lei. E desejo de Deus que eu escolha sua vontade como um fim último? Isso é impossível. É clara contradição dizer que a obrigação moral diz respeito, diretamente, só à intenção, ou à escolha de um fim pelo próprio valor intrínseco dele, e, ainda assim, que a vontade de Deus é o fundamento ou razão da obrigação. Isso é afirmar ao mesmo tempo que o valor intrínseco do fim que Deus exige que eu escolha é a razão ou o fundamento da obrigação de escolhê-lo, e ainda que não é a razão, mas que a razão é a vontade de Deus.

A vontade jamais pode ser um fim. Deus não pode desejar nosso desejo como um fim. Também não pode desejar o desejo dele mesmo como um fim. O desejo, a escolha, sempre e necessariamente implica um fim desejado inteiramente distinto do desejo ou escolha em si. O desejo não pode ser considerado, ou desejado, como um fim último por duas razões:

(1) Porque aquilo em que termina a escolha ou o desejo, e não a escolha em si, deve ser considerado o fim.

(2) Porque a escolha ou desejo não possui valor intrínseco nem valor relativo afora o fim desejado ou escolhido.

2. A vontade de Deus não pode ser o fundamento da obrigação moral em agentes morais criados. Deus possui um caráter moral e é virtuoso. Isso implica que Ele está sujeito à obrigação moral, pois a virtude nada mais é que a submissão à obrigação. Se Deus está sujeito à obrigação moral, há alguma razão, independentemente da própria vontade dele, pela qual se sujeita; alguma razão que imponha sobre Ele a obrigação de desejar conforme deseja. Sua vontade, portanto, no que diz respeito à conduta dos agentes morais, não é a razão fundamental da obrigação deles; mas o fundamento da obrigação deles deve ser a razão que induz Deus, ou torna-lhe obrigatório, a desejar, no que diz respeito à conduta de agentes morais, exatamente o que deseja.

3. Se a vontade de Deus fosse o fundamento da obrigação moral, Ele poderia, pela vontade, mudar a natureza da virtude e do vício, o que é absurdo.

4. Se a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral, Ele não só pode mudar a natureza da virtude e do vício, mas tem o direito de fazê-lo; pois se por trás de sua vontade não há algo que o obrigue assim como obriga suas criaturas, Ele tem o direito de, a qualquer momento, fazer da malevolência virtude e da benevolência, vício. Pois se a vontade dele é a base da obrigação, então a vontade dele cria o direito e tudo o que Ele desejar ou possa desejar é correto só e simplesmente porque Ele assim o deseja.

5. Se a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral, não temos um padrão pelo qual julgar o caráter moral de seus atos e não podemos saber se Ele é digno de louvor ou condenação. Nessa suposição, se Deus fosse um ser malevolente e exigisse que todas as suas criaturas fossem egoístas e não benevolentes, seria virtuoso e digno de louvor exatamente como agora; pois supõe-se que sua soberania criaria o certo e, é claro, desejando o que desejasse, aquilo seria certo simplesmente por Ele ter assim desejado.

6. Se a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral, Ele não possui um padrão pelo qual julgar o próprio caráter; Ele não possui regra, senão a própria vontade, com que comparar as próprias ações.

7. Se a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral, Ele não está sujeito à obrigação moral. Mas,

8. Se Deus não está sujeito à obrigação moral, Ele não possui caráter moral; pois virtude e vício nada mais são que conformidade ou inconformidade com a obrigação moral. A vontade de Deus, conforme expressa em sua lei, é a regra de dever dos agentes morais. Ela define e marca a trilha do dever, mas a razão fundamental pela qual os agentes morais devem agir de acordo com a vontade de Deus não é, claramente, a vontade de Deus em si.

9. A vontade de nenhum ser pode ser lei. A lei moral é uma idéia da razão divina, e não o desejo de algum ser. Se a vontade de algum ser fosse lei, tal ser não poderia, pela possibilidade natural, desejar algo errado; pois tudo o que desejasse estaria correto, só e simplesmente porque o teria desejado.

10. Mas levemos essa filosofia à luz da revelação divina. "A lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, nunca verão a alva" (Is 8.20).

A lei de Deus, ou a lei moral, requer que Deus seja amado com todo o coração e o nosso próximo, como a nós mesmos. Ora, é manifesto que o amor exigido não é mera emoção, mas que consiste em escolha, disposição, intenção, i.e., na escolha de algo por conta do valor intrínseco dele, ou na escolha de um fim último. Ora, qual é esse fim? Seria a vontade ou o mandamento de Deus? Devemos desejar como um fim último que Deus deseje que nós assim desejemos? Que pode ser mais absurdo, contraditório em si e ridículo que isso? Mas, de novo, que é esse amor, desejo, escolha, intenção exigido pela lei? Temos ordens de amar a Deus e ao próximo. Que é isso, que pode ser, senão desejar o máximo bem ou bem-estar de Deus e do próximo? Isso é intrínseca e infinitamente valioso. Isso deve ser um fim, e nada pode ser lei, se exigir a escolha de qualquer outro fim último. Também não é possível que, em hipótese alguma, seja verdadeira a filosofia que faça de qualquer outra coisa razão ou fundamento da obrigação moral.

Mas dizem que temos consciência de afirmar nossa obrigação de obedecer à vontade de Deus, sem referência a nenhuma outra razão que sua vontade, e isso, dizem, prova que sua vontade é o fundamento da obrigação.

A isso respondo: a razão de fato afirma que devemos desejar o que Deus ordena; mas isso não designa nem pode designar sua vontade como o fundamento da obrigação. Toda sua vontade quanto ao nosso dever está resumida nos dois preceitos da lei. Esses, conforme vimos, requerem a boa vontade universal do ser ou o amor supremo a Deus e igual amor ao próximo -- que desejemos o máximo bem-estar de Deus e do universo, por ele mesmo, ou seu valor intrínseco. A razão afirma que devemos assim desejar. E é possível ser mais contraditório que afirmar que devemos desejar o bem de Deus e do universo, pelo próprio valor intrínseco disso, mas não por esse motivo, mas porque Deus deseja que assim desejemos? Impossível! Mas nessa afirmação, o opositor faz referência a algum ato externo, alguma condição ou meio do fim a ser escolhido, e não ao fim em si. Mas mesmo em relação a algum ato, qualquer que seja, sua objeção não é válida. Por exemplo, Deus exige que eu trabalhe e ore pela salvação de almas, ou que faça alguma outra coisa. Ora, seu mandamento é por mim necessariamente considerado obrigatório, não uma requisição arbitrária, mas uma revelação infalível do verdadeiro meio ou condição para garantir o grande e último bem que devo desejar por seu valor intrínseco. Eu necessariamente considero seu mandamento sábio e benevolente, e é só porque assim o considero que afirmo, ou posso afirmar, minha obrigação de obedecer a Ele. Caso Ele me mandasse escolher, como fim último, ou pelo próprio valor intrínseco dele, algo que minha razão afirmasse não ser de valor intrínseco, eu não poderia afirmar minha obrigação de obedecer a Ele. Isso prova, acima de toda controvérsia, que a razão não considera seu mandamento o fundamento da obrigação, mas só uma prova infalível de que seus mandamentos são sábios e benevolentes em si, e ordenados por Ele por esse motivo.

Se a vontade de Deus fosse o fundamento da obrigação moral, Ele poderia ordenar que eu violasse e menosprezasse todas as leis de meu ser, fosse inimigo de todo bem e eu não só teria a obrigação, como também afirmaria minha obrigação de obedecer a Ele. Mas isso é absurdo. Isso nos leva à conclusão de que a pessoa que afirma que a obrigação moral diz respeito à escolha de um fim por seu valor intrínseco e ainda assim afirma que a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral contradiz as próprias convicções, as mais claras intuições da razão e da revelação divina. Essa teoria é por demais incoerente e disparatada. Ela desconsidera a própria natureza da lei moral como uma idéia da razão, e a faz consistir em desejo arbitrário.

 

Teoria do Interesse Próprio de Paley

Essa teoria, como sabe todo leitor de Paley, faz do interesse próprio a base da obrigação moral. Quanto a essa teoria, observo:

1. Que se o interesse próprio for a base da obrigação moral, então o interesse próprio é o fim a ser escolhido pelo próprio valor dele. Para ser virtuoso, devo em todas as circunstâncias ter meu interesse como o bem supremo.

Então, de acordo com essa teoria, a benevolência desinteressada é pecado. Viver para Deus e para o universo não é correto. Não é dedicação ao fim correto. Essa teoria afirma que o interesse é o fim para o qual devemos viver. Então o egoísmo é virtude e a benevolência, vício. São teorias diretamente opostas. Não pode ser uma insignificância abraçar a perspectiva errada nesse assunto. Se Dr. Paley estava correto, estão fundamentalmente errados todos os que defendem a teoria da benevolência.

2. Nessa hipótese, devo considerar meu interesse supremamente valioso, quando é infinitamente menos valioso que os interesses de Deus. Assim, estou sob uma obrigação moral de preferir um bem infinitamente menor, porque é meu, ao valor infinitamente maior que pertence a outro. É precisamente isso que faz todo pecador na Terra e no Inferno.

3. Mas examinemos essa teoria à luz da lei revelada. Se essa filosofia fosse correta, a lei diria: "Amarás a ti mesmo supremamente, e de modo algum a Deus e ao próximo". Pois Dr. Paley sustenta que a única razão da obrigação é o interesse próprio. Nesse caso, tenho a obrigação de amar só a mim mesmo, e jamais cumpro meu dever quando amo a Deus ou ao próximo. Ele diz: é a utilidade de qualquer regra que constitui sua obrigação (Paley 's Moral Philos., livro 2, cap. 6). De novo ele diz: "E caso se pergunte por que sou obrigado a guardar minha palavra, a resposta será: porque sou instado a fazê-lo por um motivo muito forte, a saber, a expectativa de ser premiado após esta vida, caso o faça; ou punido, caso contrário" (Paley's Moral Philos., livro 2, cap. 3). Parece, portanto, que a utilidade de uma regra para mim mesmo é o que se constitui a base da obrigação de obedecer a ela.

Mas ainda que se negue isso, não se pode negar que Dr. Paley sustenta que o interesse próprio é a base da obrigação moral. Nesse caso, i.e., se esse é o fundamento da obrigação moral, quer Paley ou alguém mais sustente ser isso verdade, quer não, então, é inegável que a lei moral deve dizer: "Amarás a ti mesmo supremamente e a Deus e ao próximo subordinadamente", ou, de modo mais estrito, "Amarás a ti mesmo como um fim e a Deus e ao próximo só como um meio de promover teus interesses".

Se essa teoria for verdade, todos os preceitos da Bíblia precisam ser alterados. Em lugar da ordem: "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor" (Cl 3.23), ler-se-ia: "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração para vós mesmos". Em lugar da ordem: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus"(l Co 10.31), haveria: "Fazei tudo para garantir vosso interesse". Caso se diga que essa escola diria que o significado desses preceitos é: Fazei tudo para a glória de Deus para com isso garantir o vosso interesse, respondo: Isso é contradição. Uma coisa é fazer algo para a glória de Deus; outra coisa, inteiramente diferente e oposta, é fazê-lo para garantir meus interesses. Fazê-lo para a glória de Deus é fazer de sua glória meu fim. Mas fazê-lo para garantir meu interesse é fazer do meu interesse o fim.

4. Vamos examinar essa teoria sob a luz das condições reveladas da salvação. "Qualquer de vós que não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo" (Lc 14.33). Se a teoria em consideração for verdade, deve-se ler: "Qualquer um de vós que não faz do interesse próprio o supremo alvo de sua busca não pode ser meu discípulo". De novo, "Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz" (Mt 16.24), etc. Isso, em conformidade com a teoria em questão seria: "Se alguém quiser vir após mim, não renuncie a si mesmo, mas cuide do próprio interesse e o busque acima de tudo". E possível citar uma infinidade de passagens como essas, como sabe todo leitor da Bíblia.

5. Mas examinemos essa teoria à luz de outras declarações das Escrituras. "Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber" (At 20.35). Isso, de acordo com a teoria a que nos opomos, seria: "Mais bem-aventurada coisa é receber do que dar". "A caridade (o amor) não busca os seus interesses" (1 Co 13.5). Isso seria: "A caridade busca os seus interesses". "Nenhum de nós (ou seja, nenhum homem justo) vive para si" (Rm 14.7). Isso seria: "Todos nós (os justos) vivemos para nós mesmos".

6. Examinemos essa teoria à luz do espírito e exemplo de Cristo. "Também Cristo não agradou a si mesmo" (Rm 15.3). Isso seria, se Cristo foi santo e cumpriu seu dever: "Também Cristo agradou a si mesmo, o que eqüivale a: buscou os próprios interesses". "Eu não busco a minha glória, mas a glória daquele que me enviou" (Jo 8.50). Isso seria: "Eu não busco a glória daquele que me enviou, mas a minha glória".

Mas basta. Não podemos deixar de ver que essa é uma filosofia egoísta e o oposto exato da verdade de Deus.

 

A filosofia utilitarista

Ela sustenta que a utilidade de uma ação ou escolha a torna obrigatória. Ou seja, a utilidade é o fundamento da obrigação moral; a tendência de uma ação, escolha ou intenção garantir o bem ou um fim valioso é o fundamento da obrigação de concretizar tal escolha ou intenção. Quanto a essa teoria, observo:

1. Que o utilitarista deve defender, juntamente com outros, que é nosso dever desejar o bem de Deus e do próximo pelo próprio bem; e que o valor intrínseco desse bem cria a obrigação de desejá-lo e de empenhar-nos para promovê-lo; que a tendência de escolhê-lo não seria nem a utilidade nem a obrigação, mas seu valor intrínseco. Como podem, então, sustentar que a tendência da escolha em garantir seu objeto, em lugar do valor intrínseco do objeto, seja a base da obrigação? É absurdo dizer que o fundamento da obrigação de escolher certo fim deve ser encontrado, não no valor do fim em si, mas na tendência de a intenção garantir o fim. A tendência é valiosa ou não, conforme o fim é valioso ou não. O valor do fim, não a tendência de uma intenção garantir o fim é e deve ser o que constitui o fundamento da obrigação de intentar.

2. Vimos que o fundamento da obrigação de desejar ou escolher algum fim como tal, ou seja, por ele mesmo, deve consistir no valor intrínseco do fim, e que nada mais, seja o que for, pode impor a obrigação de escolher algo como um fim último, senão seu valor intrínseco. Afirmar o contrário é afirmar uma contradição. E o mesmo que dizer que devo escolher algo como um fim, mas não como um fim, ou seja, por ele mesmo, mas por alguma outra razão, a saber, a tendência de minha escolha garantir tal fim. Aqui afirmo no mesmo fôlego que o objeto intentado deve ser um fim, ou seja, ser escolhido por seu valor intrínseco, mesmo assim não como um fim ou por seu valor intrínseco, mas por um motivo inteiramente diferente, a saber, a tendência de a escolha garanti-la.

3. Mas o próprio anúncio dessa teoria implica sua absurdidade. Uma escolha é obrigatória porque tende a garantir o bem. Mas por que garantir o bem em lugar do mal? A resposta é: porque o bem é valioso. Ah! Então temos aqui outro motivo, e um motivo que deve ser a verdadeira razão, a saber, o valor do bem que a escolha tende a garantir. A obrigação de usar meios para fazer o bem pode e deve ser condicionada pela tendência de esses meios garantirem o fim, mas a obrigação de usá-los fundamenta-se somente no valor do fim.

4. A lei exige que amemos a Deus e ao próximo porque amar a Deus e ao próximo tende ao bem-estar de Deus, de nosso próximo ou de nós mesmos? É a tendência ou utilidade do amor que nos torna obrigatório exercê-lo? Quê! Desejar o bem, não por causa de seu valor, mas porque desejar o bem fará bem! Mas por que fará bem? O que é esse amor? Aqui, deve-se lembrar de maneira distinta que o amor requerido pela lei de Deus não é uma mera emoção ou sentimento, mas desejar, escolher, intentar, em suma, que esse amor é nada mais que uma intenção última. O que, portanto, deve ser intentado como um fim ou pelo próprio valor dele? Seria a tendência do amor ou a utilidade da intenção última o fim a ser intentado? Deve ser, se o utilitarismo for verdadeiro.

De acordo com essa teoria, quando a lei requer o amor supremo a Deus e amor igual ao próximo, o significado é, não que devamos desejar, escolher, intentar o bem-estar de Deus e do próximo pelo próprio bem, ou por causa de seu valor intrínseco, mas por causa da tendência de a intenção promover o bem de Deus, do próximo e de nós mesmos. Mas seja o qual for a tendência do amor ou da intenção, sua utilidade depende do valor intrínseco daquilo que tende a promover. Suponham que o amor ou a intenção tenda a promover seu fim, essa é uma tendência útil só porque o fim é valioso em si. É absurdo, portanto, dizer que o amor a Deus e aos homens, ou uma intenção de promover o bem deles, é exigido, não pelo valor do bem-estar deles, mas porque o amor tende a promover o bem estar deles. Isso representa a lei requerendo amor, não a Deus e ao próximo como um fim, mas à tendência como um fim. A lei nesse caso seria: "Amarás a utilidade ou a tendência do amor de todo o teu coração", etc.

Se a teoria em consideração é verdadeira, esse é o espírito e significado da lei: "Amarás ao Senhor e ao próximo, ou seja, escolherás o bem deles, não pelo próprio bem, ou como um fim, mas porque a escolha tende a promovê-lo". Isso é absurdo, pergunto de novo: por que promovê-lo, mas não pelo próprio valor dele? Se a lei de Deus requer intenção última, é uma contradição afirmar que a intenção deve terminar na própria tendência dela como um fim.

5. Mas dizem que temos consciência de afirmar a obrigação de fazer muitas coisas em razão de tais coisas serem úteis ou tenderem a promover o bem.

Respondo que temos consciência de afirmar a obrigação de fazer muitas coisas sob condição de sua tendência de promover o bem, mas que jamais afirmamos que a obrigação esteja fundamentada nessa tendência. Tenho a obrigação de usar os meios para promover o bem, não pelo valor intrínseco dele, mas pela tendência de o meio promovê-lo! Isso é absurdo.

Digo novamente: a obrigação de usar os meios pode e deve ser condicionada pela tendência percebida, mas jamais fundamentada nessa tendência. A intenção última não possui tal condição. O valor intrínseco percebido impõe a obrigação sem nenhuma referência à tendência da intenção.

6. Mas suponham que algum utilitarista negue que a obrigação moral só diga respeito à intenção última e sustente que também diz respeito àquelas volições e ações que sustentam até o fim último a relação de meios e, portanto, assevere que o fundamento da obrigação moral a respeito de todas essas volições e ações é a tendência delas de garantir um fim valioso. Isso não removeria de modo algum a dificuldade do utilitarismo; pois nesse caso a tendência só poderia ser uma condição da obrigação, enquanto a razão fundamental da obrigação seria e deveria ser o valor intrínseco do fim que estes teriam a tendência de promover. A tendência de promover um fim não pode impor qualquer obrigação. O fim deve ser intrinsecamente valioso, e só isso impõe a obrigação de escolher o fim e de usar os meios para promovê-lo. Na condição de que se perceba algo que mantenha até esse fim a relação de um meio necessário, estamos, só pelo mérito do fim, sob a obrigação de usar os meios.

 

A teoria do direito como o fundamento da obrigação1

No exame dessa filosofia devo começar pela definição de termos.

Que é direito? O significado básico do termo é correto. Quando usado num sentido moral, significa apropriado, adequado, conveniente à natureza e relações de agentes morais. O direito, num sentido moral, diz respeito à escolha, intenção, sendo uma intenção de acordo com a lei moral ou conformada com ela. A pergunta diante de nós é: qual a base da obrigação de levar adiante uma escolha ou intenção? Os que defendem essa posição dizem que o direito é a base de tal obrigação. Essa é a resposta dada a essa questão por uma vasta escola de filósofos e teólogos. Mas que significa essa afirmação? E em geral defendido por essa escola que o direito, num sentido moral, pertence principal e estritamente só às intenções. Eles sustentam, como eu, que a obrigação diz respeito principal e estritamente à escolha ou intenções últimas, e menos estritamente às volições executivas e à escolha das condições e meios de garantir o objeto de escolha última. Ora, em que sentido do termo direito eles o consideram a base da obrigação?

O direito é objetivo e subjetivo. O direito, no sentido objetivo do termo tem sido definido recentemente como o que consiste na relação da adequação intrínseca existente entre a escolha última e seu objeto (Filosofia Moral de Mahan). Por exemplo, a natureza ou valor intrínseco do máximo bem-estar de Deus e do universo cria a relação de adequação intrínseca entre ela e a escolha e essa relação, insiste-se, cria a obrigação ou é sua base.

O direito subjetivo é sinônimo de justiça, retidão, virtude. Consiste em, ou é um atributo de, aquele estado da vontade conformada com o direito objetivo ou a lei moral. E um termo que expressa a qualidade, elemento ou atributo moral daquela intenção última que a lei de Deus requer. Ainda em outras palavras, é conformidade de coração com a lei do direito objetivo; ou, como acabei de dizer, é mais estritamente o termo que designa o caráter moral daquele estado de coração. Alguns preferem considerar que o direito subjetivo consiste nesse estado de coração, e outros insistem que se trata apenas de um elemento, atributo ou qualidade desse estado de coração ou essa intenção última. Não vou discutir palavras, mas mostrarei que isso não importa, no que diz respeito à questão que estamos para examinar, em qual dessas luzes é considerado o direito subjetivo: se algo que consiste na intenção última conformada à lei ou como um atributo, elemento ou qualidade dessa intenção.

A teoria em consideração foi defendida por filósofos gregos e romanos antigos. Era a teoria de Kant e é agora a teoria da escola transcendental na Europa e na América. Cousin, em manifesto acordo com as idéias de Kant, enuncia a teoria com as seguintes palavras: "Faça o direito pelo direito, ou melhor, deseje o direito pelo direito. A moralidade está ligada às intenções" (Enunciation of Moral Laiv -- Elements of Psychology, p. 162). Os que seguem Kant, Cousin e Coleridge enunciam a teoria ou com as mesmas palavras ou com palavras que resultam no mesmo. Eles têm o direito por fundamento da obrigação moral. "Deseje o direito pelo direito". Isso precisa significar: deseje o direito como um fim último, ou seja, pelo valor dele mesmo. Examinemos essa filosofia muito popular, primeiro à luz dos próprios princípios dela e, depois, à luz da revelação.

O escritor primeiro mencionado acima apresenta declaradamente uma definição crítica da posição e do ensino exato dos que defendem o direito. Eles defendem, segundo o autor, e suponho que tenha definido corretamente a posição dessa escola, que o direito subjetivo é a base da obrigação. Veremos, adiante, que o direito subjetivo ou a justiça jamais pode ser uma base da obrigação moral. Aqui consideraremos a posição criticamente definida do defensor da teoria do direito que sustenta que a relação da adequação intrínseca que existe entre a escolha e um objeto intrinsecamente valioso é a base da obrigação de escolher tal objeto.

Agora observem: esse autor é persistente em sustentar que a razão para a escolha última deve encontrar-se exclusivamente no objeto de tal escolha; em outras palavras, que a escolha última é a escolha de seu objeto pelo valor dele mesmo, ou por aquilo que é intrínseco ao objeto em si. Ele também afirma repetidas vezes que a base da obrigação é e deve ser encontrada exclusivamente no objeto de escolha última e também que a base da obrigação é a consideração, intrínseca no objeto de escolha, que compele a razão a afirmar a obrigação de escolhê-lo pelo próprio valor dele. Mas tudo isso contradiz terminantemente sua teoria de direito, conforme acima enunciada. Se a base da obrigação de concretizar a escolha última deve ser encontrada, como certamente deve ser, na natureza do objeto de escolha, e em nada extrínseco a ele, como ela pode consistir na relação de adequação intrínseca que existe entre a escolha e seu objeto? É evidente que não pode. Essa relação não é intrínseca ao objeto de escolha.

Observem que a obrigação é de escolher o objeto de escolha última, não por causa da relação que existe entre a escolha e seu objeto, mas exclusivamente por causa do que é intrínseco ao objeto em si. A relação não é o objeto de escolha, mas a relação é criada pelo objeto de escolha. Qualquer que seja a escolha, a natureza ou o valor intrínseco do objeto, como o bem do ser, por exemplo, cria tanto a relação de justiça como a obrigação de escolher o objeto por ele mesmo. Aquilo que cria a relação de justiça objetiva deve, pelo mesmo motivo, criar a obrigação, pois é absurdo dizer que o valor intrínseco do objeto cria a relação de justiça entre ele mesmo e a escolha, e ainda assim que isso não impõe ou cria a obrigação de escolhê-lo por ele mesmo.

É manifesto, portanto, que uma vez que o objeto deve ser escolhido pela própria natureza dele ou por algo que seja intrínseco a ele, e não pela relação em questão, a natureza do objeto, e não a relação, é e deve ser a base da obrigação.

Mas o autor que fornece a posição acima definida acerca dos que defendem a teoria do direito, diz que "a inteligência, ao julgar um ato certo ou errado, não leva em consideração o objeto nem o ato em si, mas os dois juntos, em suas relações intrínsecas, como base de sua afirmação".

Mas a natureza da escolha última e a natureza de seu objeto, o bem do ser, por exemplo, com suas relações intrínsecas entre si, formam uma base de obrigação de escolha-quê? A escolha, o objeto e suas relações intrínsecas? Não, mas só e simplesmente para escolher o bem pelo próprio bem, ou somente pelo que é intrínseco nele. Observem: esse autor afirma com freqüência que a escolha última é a escolha de um objeto por ele mesmo, pelo que é intrínseco ao objeto em si. Que a base da obrigação de concretizar a escolha última deve, em todos os casos, ser intrínseca ao objeto de escolha. Mas o objeto de escolha nessa caso é o bem do ser, e não a natureza da escolha e do bem do ser, juntamente com a relação intrínseca de justiça existente entre eles. A forma da obrigação revela a base dela. A forma da obrigação é escolher o bem do ser, i.e., o objeto de escolha pelo que há de intrínseco nele. Então, a base da obrigação deve ser a natureza intrínseca do bem, i.e., o objeto da escolha. A natureza da escolha e as relações intrínsecas da escolha e o bem são condições, mas não a base da obrigação. Bastava que o escritor tivesse em mente a definição crítica de intenção última dada por ele mesmo, suas declarações freqüentemente repetidas de que a base da obrigação deve ser encontrada, em todos os casos, intrinsecamente no objeto de escolha última, e em nada externo a ele, e ele jamais teria feito a declaração que acabamos de examinar.

O dever da benevolência desinteressada universal é afirmada e aceita universal e necessariamente. Mas se a teoria do direito estiver correta, então a benevolência desinteressada é pecado. De acordo com esse esquema, o direito, e não o bem do ser, é o fim para o qual Deus e todos os agentes morais devem viver. De acordo com essa teoria, a benevolência desinteressada jamais pode ser um dever, jamais pode estar correta, mas sempre e necessariamente errada. Não quero dizer que os defensores dessa teoria percebam e admitam essa conclusão. Mas é maravilhoso2 que não, pois nada é mais manifesto. Se os agentes morais devem desejar o direito pelo direito, ou desejar o bem, não pelo bem, mas pela relação de justiça existente entre a escolha e o bem, então desejar o bem por ele mesmo é pecado. E não desejar o fim correto. É desejar o bem e não o direito como o fim último. São teorias contrárias. As duas não podem ser verdadeiras. Qual é o correto: desejar o bem pelo bem, ou o direito? Deixemos a resposta para a razão universal.

Mas vamos examinar essa filosofia à luz dos oráculos de Deus.

1. À luz da lei moral. Toda a lei é assim expressa pelo grande Mestre: "Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento e ao teu próximo como a ti mesmo" (Dt 6.5). Paulo diz: "toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: amor; portanto, o amor é o cumprimento da lei" (Gl 5.14). Ora, admite-se com essa filosofia que o amor requerido pela lei não é uma mera emoção, mas o que consiste em desejo, escolha, intenção; que consiste na escolha de um fim último ou na escolha de algo pelo que é, ou, em outras palavras, pelo seu valor intrínseco. O que é isso que a lei exige que desejemos em relação a Deus e ao próximo? Seria desejar para Deus e para o nosso próximo ou em relação a eles algo, não pelo valor intrínseco dele, mas pela relação de justiça existente entre a escolha e ele? Isso é absurdo. Além disso, que tem isso com o amor a Deus e ao próximo? Desejar algo, o bem, por exemplo, de Deus e de nosso próximo pela relação em questão não é o mesmo que amar a Deus e ao próximo, uma vez que não se deseja o bem deles pelo próprio bem. Não é desejar o bem deles por alguma consideração por eles, mas somente por consideração à relação de adequação existente entre o desejo e o objeto desejado. Suponham que se diga que a lei requer que desejemos o bem ou a máxima bem-aventurança de Deus e do próximo porque é direito. Isso é uma contradição e impossibilidade. Desejar a bem-aventurança de Deus e de nosso próximo, em qualquer sentido próprio, é desejá-lo pelo que é ou como um fim último. Mas isso não é desejá-lo por ser direito. Desejar o bem de Deus e do próximo pelo próprio bem ou pelo seu valor intrínseco é direito. Mas desejá-lo, não pelo seu valor intrínseco para eles, mas pela relação de adequação entre o desejo e o objeto não é direito porque não é um desejo pelo motivo correto. A lei de Deus não requer nem pode requerer que amemos o direito mais que a Deus e ao próximo. Quê! Direito de valor superior que o máximo bem-estar de Deus e do universo? Impossível! É impossível que a lei moral requeira outra coisa, senão que se deseje o máximo bem do ser universal como um fim último, i.e., por ele mesmo. É uma verdade primeira da razão que essa é a coisa mais valiosa possível ou imaginável e que não há possibilidade alguma de ser lei algo que requeira que se escolha outra coisa como fim último. De acordo com essa filosofia, a lei revelada seria: "Amarás o direito pelo direito, de todo o teu coração, e de toda a tua alma". O fato é que a lei requer o supremo amor a Deus e igual amor ao próximo. Nada fala e nada insinua acerca de fazer o direito pelo direito. A teoria do direito é uma rejeição da lei divina, substituindo-a por uma regra totalmente diferente de obrigação: uma regra que deifica o direito, rejeita o clamor de Deus e exalta o direito ao trono.

2. "Quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Co 10.31). Esse preceito requer de nós que desejemos a glória de Deus por seu valor intrínseco ou relativo, ou pela adequação intrínseca entre o desejo e seu objeto? A glória e o renome de Deus é de valor infinito para Ele e para o universo e por esse motivo deve ser promovido. O que se requer aqui é um ato, um ato executivo. O espírito da requisição é esta: Tenha por alvo disseminar o renome ou a glória de Deus como o meio de garantir o máximo bem-estar do universo. Por quê? Respondo: pelo valor intrínseco de seu bem-estar e não pela relação de adequação existente entre o desejo e o objeto.

3. Tomem as ordens de orar e trabalhar pela salvação das almas. Essas ordens exigem que concretizemos o desejo, ou façamos o direito pelo direito, ou desejemos a salvação das almas pelo valor intrínseco da salvação delas? Quando oramos, pregamos e conversamos, devemos ter por alvo o direito, o amor pelo direito, e não devemos ser influenciados pelo amor a Deus e às almas? Quando me empenho na oração e luto dia e noite pelas almas, e tenho os olhos tão fixados no bem das almas e na glória de Deus, e estou tão envolvido em meu objetivo que pouco penso no direito, estou totalmente errado? Devo orar porque é direito e fazer tudo o que faço e sofrer tudo o que sofro não por boa vontade para com Deus e os homens, mas porque é direito? Quem não sabe que intentar o direito pelo direito em tudo isso, em vez de fixar os olhos unicamente no bem do ser, é e deve ser qualquer coisa, menos religião verdadeira?

4. Examinemos essa filosofia à luz da declaração da Escritura: "Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16). Ora, devemos entender que Deus nos deu seu Filho, não por considerar o bem das almas em si, mas o direito? Ele desejou o direito pelo direito? Ele deu seu Filho para morrer pelo direito, por consideração ao direto, ou para morrer para tornar possível a salvação por consideração às almas? Será que Cristo se deu para lutar e morrer pelo direito, por consideração ao direito, ou pelas almas, por amor às almas? Os profetas, e apóstolos, e mártires, e os santos em todas as eras desejaram o direito pelo direito ou lutaram e sofreram e morreram por Deus e pelas almas, por amor a eles?

5. Mas tomemos outra passagem citada em apoio a essa filosofia: "Filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo". Ora, qual o espírito dessa ordem? Que é obedecer aos pais? Ora, se como sustenta essa filosofia, isso deve resumir-se em intenção última, qual deve ser a intenção da criança pela própria intenção? Deve desejar o bem para Deus e para os pais e obedecer a eles como o meio de garantir o máximo bem, ou deve desejar o direito como um fim, pelo direito, sem se importar com o bem de Deus ou do universo? Seria correto desejar o direito pelo direito em lugar de desejar o bem do universo pelo bem e obedecer aos pais como um meio de garantir o máximo bem?

É correto desejar o máximo bem de Deus e do universo e usar todos os meios necessários e cumprir todas as condições necessárias desse máximo bem-estar. Para as crianças, obedecer aos pais é um dos meios, e por esse motivo é correto e não se pode requerê-lo sob nenhuma outra condição. Mas dizem que as crianças afirmam sua obrigação de obedecer aos pais sem nenhuma consideração de que a obediência faça referência ou mantenha alguma relação com o bem do ser. Isso é um erro. A criança, se for um agente moral e realmente afirmar a obrigação moral, não só percebe, como deve perceber, o fim em que sua escolha ou intenção deve terminar. Se realmente fizer uma afirmação inteligente, é e deve ser que precisa desejar um fim; que esse fim não é nem pode ser o direito, conforme foi demonstrado. A criança sabe que deve desejar a felicidade dos pais, e a felicidade dela mesma, e a felicidade do mundo, e a de Deus; e sabe que a obediência aos pais sustenta a relação de meio para esse fim. O fato é, trata-se de uma verdade primeira da razão, que ela deve desejar o bem dos pais e o bem de todos. Ela também sabe que a obediência aos pais é um meio necessário para esse fim. Se não souber essas coisas, é impossível para ela ser um agente moral, fazer alguma afirmação inteligente; e se ela tiver alguma idéia de obediência, é e deve ser como a que têm os animais que são movidos totalmente por esperança, medo e instinto. Também poderíamos dizer que um boi ou cão, que dê indicações de saber, de algum modo, que deve nos obedecer, afirma a obrigação moral dele mesmo, como diríamos o mesmo de uma criança em cuja mente a idéia de bem ou do valor para o ser não está desenvolvida. Quê? A obrigação moral só diz respeito à intenção última? E a intenção última consiste na escolha de algo pelo próprio valor intrínseco dele, mas ainda é verdade que as crianças afirmam a obrigação moral antes de ter totalmente desenvolvida a idéia do valor intrínseco? Impossível! Mas essa objeção pressupõe que as crianças possuem a idéia de direito desenvolvida antes da idéia do valor. Isso não é possível. O fim a ser escolhido deve ser apreendido pela mente, antes que a mente possa ter a idéia da obrigação moral para escolher um fim, ou do certo e errado de escolhê-lo ou não. O desenvolvimento da idéia do bem ou do valor deve preceder o desenvolvimento das idéias de direito e de obrigação moral.

Tomemos essa filosofia no próprio campo dela e suponhamos que a relação de direito existente entre a escolha e seu objeto seja a base da obrigação: é evidente que o objeto intrinsecamente valioso deve ser percebido antes que se possa perceber essa relação. Assim, a idéia do intrinsecamente valioso deve ser desenvolvida como uma condição da existência da idéia da relação em questão. A lei de Deus, portanto, não é nem pode ser desenvolvida na mente de uma criança que não tenha conhecimento ou idéia do valor e que não faça, não possa fazer, nenhuma referência ao bem de algum ser em obediência aos pais.

Uma coisa é entender que a intenção de algo é o direito e outra, bem diferente, entender o direito como um fim. Por exemplo, escolher minha gratificação como um fim é errado. Mas isso não é escolher um erro como um fim. Um bêbado escolhe gratificar o apetite de bebida forte como um fim, ou seja, pela própria bebida. Isso é errado. Mas a escolha não termina no erro, mas na gratificação. O objeto buscado não é o erro. A bebida não é escolhida, a gratificação não está em mente, por ser errada, mesmo assim, é errada. Amar a Deus é direito, mas supor que Deus é amado porque é direito, é absurdo. Trata-se de uma absurdidade e contradição. Amar o próximo ou desejar o bem dele é direito. Mas desejar o direito, em lugar do bem do meu próximo não é direito. É amar o direito em lugar do meu próximo, isso não é direito.

1. Mas faz-se a objeção de que tenho consciência de afirmar a mim mesmo que devo desejar o direito. Isso é um erro. Tenho consciência de afirmar a mim mesmo que devo desejar aquilo que é direito desejar, a saber, desejar o bem de Deus e do ser. Isso é certo. Mas isso não é escolher o direito como um fim.

Mas ainda se insiste que temos consciência de afirmar a obrigação de desejar e fazer muitas coisas só e simplesmente por ser direito e, portanto, de desejar e fazer em vista dessa justiça.

A isso replico que a razão imediata para o ato, imaginada no momento e presente de imediato na mente, pode ser a justiça do ato, mas em tais casos a justiça é só considerada pela mente como uma condição e jamais como a base da obrigação. O ato deve ser a escolha última ou a escolha de condições e meios. Na escolha última, com certeza, a mente jamais pode afirmar ou pensar que a relação de justiça entre a escolha e seu objeto, em lugar do valor intrínseco do objeto, seja a base da obrigação. A mente também não pode pensar na relação de justiça entre a escolha de condições e meios, e seu objeto, como a base da obrigação de escolhê-los. Ela pressupõe e deve pressupor o valor do fim como o que cria a obrigação da escolha e também a relação em questão. O fato é que a mente necessariamente pressupõe, sem nem sempre pensar nessa pressuposição, sua obrigação de desejar o bem pelo bem, juntamente com todas condições e meios conhecidos. Assim, sempre que percebe uma condição ou meio para o bem, afirma de modo imediato e necessário, a obrigação de escolhê-lo ou, em outras palavras, afirma a justiça de tal escolha. A justiça da escolha pode ser, e muitas vezes é, o que se tem em mente de imediato, mas a pressuposição é, e deve ser, que essa obrigação, e, assim a justiça, é criada pela natureza do objeto com que isso mantém uma relação de condição ou meio.

2. Mas também se diz: "Tenho consciência de firmar a mim mesmo que devo desejar o bem do ser porque é justo". Isto é, desejar o bem do ser como um meio e o direito como um fim! O que é fazer do direito o supremo bem, e do bem do ser um meio para esse fim. Isso é absurdo. Mas dizer que estou consciente de afirmar a mim mesmo minha obrigação de amar a Deus e ao próximo ou desejar o bem deles porque é justo, é uma contradição. E o mesmo que dizer: devo amar ou intentar o bem de Deus e de meu próximo como um fim último, mas ainda assim não intentar o bem de Deus e de meu próximo, mas intentar o direito.

3. Mas dizem que "devo amar a Deus em sujeição e respeito à minha obrigação; devo desejá-lo porque sou intimado a desejá-lo". Ou seja, que, ao amar a Deus e ao próximo, devo intentar desempenhar ou cumprir minha obrigação; e isso, dizem, eqüivale a intentar o direito. Mas meu objetivo supremo deve ser cumprir meu dever -- desempenhar minha obrigação, em vez de desejar o bem-estar de Deus e de meu próximo em consideração a eles? Se meu fim é cumprir meu dever, não o faço. Pois qual é minha obrigação? Ora, amar ou desejar o bem de Deus e de meu próximo, esse é um fim, pelo próprio valor disso. Para cumprir, pois, minha obrigação, devo intentar o bem de Deus e do próximo como um fim. Ou seja, devo intentar o que tenho a obrigação de intentar. Mas não tenho a obrigação de intentar o direito porque é direito, nem de cumprir meu dever porque é meu dever, mas intentar o bem de Deus e de meu próximo porque isso é bom. Assim, para cumprir minha obrigação, devo intentar o bem e não o direito -- o bem de Deus e de meu próximo e não para cumprir meu dever. Repito, intentar o bem ou o que seja valioso é direito, mas intentar o direito não é direito.

4. Mas dizem que em muitíssimos casos, pelo menos, tenho consciência de afirmar minha obrigação moral para com o direito, sem uma referência ao bem do ser, quando não posso assinalar uma outra razão para a afirmação de obrigação, senão o direito. Por exemplo, contemplo a virtude; afirmo espontânea e necessariamente que devo amar tal virtude. E isso, dizem, não se refere ao bem do ser. Desejar o direito pelo direito e amar a virtude são a mesma coisa? Mas que é amar a virtude? Nele não há um mero sentimento de prazer ou satisfação. Concorda-se que a obrigação moral, estritamente falando, diz respeito só a intenção última. Que, então quero dizer com a afirmação de que devo amar a virtude? Que é virtude? É uma intenção última ou um atributo de intenção última. Mas que é amar a virtude? Consiste em desejar sua existência. Mas dizem que afirmo minha obrigação de amar a virtude como um fim, ou por ela mesma, e não por consideração ao bem do ser. Isso é absurdo e contraditório. Amar a virtude, dizem, é desejar sua existência como um fim. Mas a virtude consiste em intentar um fim. Ora, amar a virtude, dizem, é desejar, intentar sua existência como um fim, por ela mesma. Então, de acordo com essa teoria, afirmo minha obrigação de intentar a intenção de um ser virtuoso como um fim, em vez de intentar o mesmo fim que ele. Isso é absurdo: sua intenção não tem valor, não é naturalmente boa nem moralmente boa, seja qual for o fim intentado. Não é certo nem errado, seja qual for o fim escolhido. É, portanto, impossível desejar, escolher, intentar a intenção como um fim, sem referência ao fim intentado. Amar a virtude, portanto, é amar ou desejar o fim em que termina a intenção virtuosa, a saber, o bem do ser; ou, em outras palavras, amar a virtude é desejar sua existência pelo fim que tem em vista, que eqüivale a desejar o mesmo fim. Virtude é intentar, escolher um fim. Amar a virtude é desejar que a intenção virtuosa exista em consideração a seu fim. Retire-se o fim, e quem desejaria ou poderia desejar a intenção? Sem o fim, a virtude, ou intenção, não existiria, não poderia existir. Não é verdade, pois, que no caso suposto afirmo minha obrigação de desejar ou intentar sem nenhuma referência ao bem do ser.

5. Mas de novo dizem que quando contemplo a excelência moral de Deus, afirmo minha obrigação de amá-lo somente por sua bondade, sem nenhuma referência ao bem do ser e por nenhum outro motivo, senão porque é direito. Mas amar a Deus por causa de sua excelência moral e porque é direito não são a mesma coisa. É uma contradição grosseira dizer que se ama a Deus por sua excelência moral porque é direito. É o mesmo que dizer: amo a Deus porque Ele é moralmente excelente ou digno, mas de modo algum por esse motivo, mas porque é direito. Amar a Deus por sua dignidade moral é desejar o bem a Ele por Ele mesmo, na condição de que Ele o merece. Mas desejar sua dignidade moral porque é direito é desejar o direito como um fim último, ter consideração suprema pelo direito, em lugar da dignidade moral ou o bem-estar de Deus.

Mas é razoável perguntar: por que os que defendem a teoria do direito apresentam essas objeções? Todos eles pressupõem que a obrigação moral pode dizer respeito a algo que não a intenção última. Por que, repito, os que defendem a teoria do direito afirmam que a excelência moral de Deus é o fundamento da obrigação moral, uma vez que sustentam que o direito é o fundamento da obrigação moral? Por que os defensores da teoria de que a excelência de Deus é o fundamento da obrigação moral afirmam que o direito é o fundamento ou que somos intimados a amar a Deus por sua excelência moral porque isso é direito? São contradições crassas. Os que defendem essa teoria sustentam que a benevolência desinteressada é um dever universal; que essa benevolência consiste em desejar o máximo bem do ser em geral, pelo bem; que esse bem, em virtude de sua natureza, impõe a obrigação de escolhê-la por ela mesma e, assim, por esse motivo, é direito, portanto, escolhê-la. Mas apesar de tudo isso, precisam incoerentemente afirmar que o direito é a base universal da obrigação. A coerência deve compeli-los a negar que a benevolência desinteressada seja ou possa ser dever e direito, ou abandonar o dogma sem sentido de que o direito é a base da obrigação. Não há fim nos absurdos em que o erro envolve seus defensores, e é singular ver defensores de diferentes teorias, cada um por sua vez, abandoar a própria teoria e afirmar outras, como objeção à verdadeira teoria. Também foi e continua sendo comum os escritores confundirem diferentes teorias entre si, afirmando, no espaço de poucas páginas, várias teorias diferentes. Pelo menos isso tem ocorrido em alguns casos.

A teoria do direito, sendo coerente, é uma filosofia sem Deus, sem Cristo e sem amor. Isso Kant viu e reconheceu. Ele a chama pura legalidade, ou seja, ele entende que a lei impõe obrigação em virtude de sua natureza, em lugar do valor intrínseco do fim que a lei exige seja escolhido pelos agentes morais. Ele perde de vista o fim e não reconhece fim algum, qualquer que seja. Ele faz grande distinção entre moralidade e religião. A moralidade consiste, de acordo com ele, na adoção da máxima: "Faça o direito pelo direito", ou, "Aja em todo o tempo de acordo com a máxima adequada à lei universal". A adoção dessa máxima é moralidade. Mas então, tendo adotado essa máxima, a mente sai para colocar sua máxima em prática. Ela descobre que Deus e o ser existem e vê que é direito intentar o bem deles. Esse intentar o bem é religião, de acordo com ele. Assim, diz ele, a ética leva à religião ou nela resulta (veja Kant, sobre Religião). Mas sentimo-nos instigados a inquirir: quando percebemos Deus e o ser, devemos desejar o bem-estar deles como um fim, pelo próprio bem, ou porque é direito? Se pelo próprio bem, onde fica a máxima: "Deseje o direito pelo direito?" Pois se devemos desejar o bem, não como fim último, mas pelo direito, então o direito é o fim preferível ao máximo bem-estar de Deus e do universo. E impossível que isso seja religião. Aliás, o próprio Kant admite que isso não é religião.

Mas chega dessa filosofia fria e desprovida de amor. Uma vez que ela se exalta acima de tudo o que se chama Deus e subverte todos os ensinos da Bíblia, não pode ser pouca coisa ser iludido por ela. Mas é notável e interessante ver como cristãos que defendem a teoria do direito, sem perceber sua incoerência, com freqüência confundem essa filosofia com a que ensina que a boa vontade para com o ser constitui-se virtude. Numerosos exemplos disso ocorrem em toda parte de seus escritos, o que demonstra que a teoria do direito é para eles só uma teoria que "gira em torno da cabeça, mas não chega perto do coração".

 

Entro agora na discussão da teoria de que a bondade, ou excelência moral de Deus é o fundamento da obrigação moral.3

 

A essa filosofia replico:

1. Que a razão da obrigação, ou daquilo que impõe a obrigação, é idêntica ao fim em que a intenção deve terminar. Se, portanto, a bondade de Deus for a razão ou fundamento da obrigação moral, então a bondade de Deus é o fim último a ser intentado. Mas, uma vez que essa bondade consiste em amor ou benevolência, é impossível que deva ser considerada ou escolhida como fim último; e escolhê-la seria escolher a escolha divina, intentar a intenção divina como fim último, em lugar de escolher o que Deus escolhe e intentar o que Ele intenta. Ou se a bondade ou excelência moral de Deus deve ser considerada não idêntica à benevolência, mas um atributo ou qualidade moral dela, então, na teoria em consideração, um agente moral deve escolher uma qualidade da escolha ou intenção divina como um fim último, em lugar do fim em que termina a intenção divina. Isso é absurdo.

2. É impossível que a virtude seja o fundamento da obrigação moral. A virtude consiste numa submissão à obrigação moral. Mas a obrigação deve existir antes que se possa submeter-se a ela. Ora, nessa teoria, a obrigação não pode existir antes que a virtude exista como fundamento. Portanto, essa teoria remonta no seguinte: a virtude é o fundamento da obrigação moral; de modo que a virtude deve existir antes que possa existir a obrigação moral.

Mas, uma vez que a virtude consiste numa conformidade com a obrigação moral, a obrigação moral deve existir antes que possa existir a virtude. De modo que nem a obrigação moral nem a virtude podem existir em hipótese alguma. A virtude de Deus deve ter existido antes de sua obrigação, como seu fundamento. Mas uma vez que a virtude consiste na submissão à obrigação moral e uma vez que a obrigação não poderia existir antes que existisse a virtude como seu fundamento, em outras palavras, uma vez que a obrigação não poderia existir sem a existência prévia da virtude como seu fundamento, e uma vez que a virtude não poderia existir sem a existência prévia da obrigação, segue-se que nem Deus nem qualquer outro ser jamais poderiam ser virtuosos, em razão de jamais poderem estar sujeitos à obrigação moral. Caso se diga que a santidade de Deus é o fundamento de nossa obrigação de amá-lo, pergunto em que sentido isso pode ocorrer. Qual a natureza ou forma desse amor que sua virtude coloca sobre nós uma obrigação de exercer? Não pode ser uma mera emoção de aquiescência, pois as emoções, sendo estados involuntários da mente e meros fenômenos da sensibilidade, não estão estritamente no âmbito da legislação e moralidade. Esse amor pode ser reduzido à benevolência ou boa vontade? Mas por que desejar o bem de Deus em lugar do mal? Ora, com certeza, porque o bem é valioso por si. Mas se é valioso por si, essa deve ser a razão fundamental para desejá-lo como um bem possível; e a virtude de Deus deve ser apenas uma razão secundária ou condição da obrigação de desejar a bem-aventurança real dele. Mas, de novo, o fundamento da obrigação moral deve ser o mesmo em todos os mundos e em todos os agentes morais, pelo simples motivo de que a lei moral é única e idêntica em todos os mundos. Se a virtude de Deus não é o fundamento da obrigação moral nele, o que não pode ser, então não pode ser o fundamento da obrigação em nós, como a lei moral deve requerer de Deus que escolha o mesmo fim que requer que escolhamos. A virtude de Deus deve ser uma razão secundária da obrigação que Ele tem de escolher a própria bem-aventurança e a condição de nossa obrigação de desejar a bem-aventurança real e máxima dele, mas não pode ser a razão fundamental, que sempre é o valor intrínseco de seu bem-estar.

Se essa teoria for verdadeira, a benevolência desinteressada é um pecado. Inegavelmente a benevolência consiste em desejar o máximo bem-estar de Deus e do universo pelo próprio bem, na devoção da alma e de tudo para esse fim. Mas essa teoria nos ensina ou a desejar a excelência moral de Deus, por ela mesma, ou como um fim último, ou a desejar o bem de Deus e do universo, não pelo bem, mas porque Deus é moralmente excelente. A teoria da benevolência considera a bem-aventurança um fim e a santidade ou excelência moral uma condição do fim. Essa teoria considera a excelência moral em si como um fim. Será que a excelência moral de Deus impõe a obrigação de desejar sua excelência moral por ela mesma? Se não, não pode ser uma base da obrigação. Será que a excelência moral de Deus impõe a obrigação de desejar o máximo bem de Deus e do universo, por si? Não, pois isso seria uma contradição. Pois, lembrem-se, nada pode ser base de obrigação para escolha de outra coisa por si. Aquilo que cria a obrigação de escolher, em razão da própria natureza, deve ser em si idêntico ao objeto de escolha; a obrigação é de escolher aquele objeto por si.

Se a excelência moral divina é a base da obrigação de escolher, então essa excelência deve ser o objeto dessa escolha, e a benevolência desinteressada jamais está correta, mas sempre errada.

3. Mas para um exame mais sistemático do assunto, vamos:

(1) Demonstrar o que é virtude ou excelência moral.

(2) Que ela não pode ser o fundamento da obrigação moral.

(3) Demonstrar o que é dignidade moral ou merecimento.

(4) Que a dignidade moral ou o merecimento não pode ser o fundamento da obrigação moral.

(5) Mostrar a relação da virtude, mérito e dignidade moral e a obrigação moral.

(6) Responder a objeções.

(1) Demonstrar o que é virtude ou excelência moral.

A virtude ou excelência moral consiste na conformidade de vontade com a lei moral. Ela deve ser ou idêntica a amor ou boa vontade ou deve ser o atributo moral ou elemento da boa vontade ou benevolência.

(2) Ela não pode ser o fundamento da obrigação moral. Concorda-se que a lei moral requer amor e que esse termo expressa tudo o que ela requer. Também se concorda que esse amor é boa vontade ou que ela se resume na escolha ou intenção última. Ou, em linguagem mais comum, esse amor consiste na suprema devoção de coração e alma a Deus e ao máximo bem do ser. Mas, uma vez que a virtude ou consiste em escolha, ou é um atributo da escolha, ou em benevolência, é impossível desejá-la como fim último. Pois isso implicaria o absurdo de escolher a escolha ou intentar a intenção, como um fim, em lugar de escolher como um fim aquilo em que termina a escolha virtuosa. Ou, se a virtude é considerada o atributo moral da escolha como um fim último, em lugar daquilo em que termina ou deve terminar a escolha. Isso é absurdo.

(3) Demonstrar o que é dignidade moral ou merecimento.

A dignidade moral ou merecimento não eqüivale a virtude ou a obediência à lei moral, mas é um atributo de caráter que resulta da obediência. A virtude ou santidade é um estado mental. É um estado ativo e benevolente da vontade. A dignidade moral não é um estado mental, mas o resultado de um estado mental. Dizemos que a obediência do homem à lei moral é valiosa em tal sentido que um ser santo é digno ou merece o bem por causa de sua virtude ou santidade. Mas essa dignidade, esse merecimento, não é um estado mental, mas, como eu disse, um resultado da benevolência. É um atributo ou qualidade de caráter, não um estado mental.

(4) A dignidade moral ou o merecimento não pode ser o fundamento da obrigação moral.

(a) Aceita-se que o bem, ou o ser intrinsecamente valioso, deve ser o fundamento da obrigação moral. A lei de Deus requer a escolha de um fim último. Esse fim deve ser intrinsecamente valioso, pois é seu valor intrínseco que impõe a obrigação de desejá-lo. Nada, portanto, pode ser o fundamento da obrigação moral, senão algo que seja bom ou intrinsecamente valioso por si.

(b) O bem último ou o intrinsecamente valioso deve pertencer a existências conscientes e ser inseparável delas. Um bloco de mármore não pode desfrutar o bem ou ser sujeito a ele. Aquilo que é intrinsecamente bom para agentes morais deve consistir num estado mental. Deve ser algo que se encontra no campo da consciência. Nada lhes pode ser um bem intrínseco, senão algo de que possam ter consciência. Mas isso não significa que tudo de que tenham consciência lhes seja um bem último ou um bem em algum sentido; mas significa que não lhes pode ser um bem último ou intrínseco algo do qual não tenham consciência. O bem último deve consistir num estado mental consciente. Tudo o que nos conduza ao estado mental necessariamente considerado por nós como algo intrinsecamente bom ou valioso é para nós um bem relativo. Mas só o estado mental é o bem último. Daí fica claro que a dignidade moral ou o merecimento não pode ser o fundamento da obrigação moral, porque não é um estado mental e não pode ser um bem último. A consciência de merecimento, ou seja, a consciência de afirmarmos a nós mesmos um merecimento é um bem último. Ou, mais estritamente, a satisfação que a mente experimenta na ocasião em que afirma seu merecimento é um bem último. Mas nem a afirmação consciente de merecimento nem a satisfação ocasionada pela afirmação são idênticas à dignidade moral ou merecimento. O mérito, a dignidade moral, é a condição ou ocasião da afirmação e da satisfação consciente resultante, sendo, portanto, um bem, mas não é nem pode ser um bem último ou intrínseco. E valioso, mas não um valor intrínseco. Caso os seres morais não fossem constituídos como são, preenchendo as demandas da inteligência e assim produzindo satisfação em sua contemplação, isso não seria nem poderia ser considerado com razão um bem em algum sentido. Mas uma vez que atende às demandas da inteligência, é um bem relativo e resulta em bem último.

(5) Mostrar a relação da excelência moral, dignidade, mérito e merecimento com a obrigação moral.

(a) Vimos que nada disso pode ser o fundamento da obrigação moral; que nada disso possui em si o elemento de bem ou valor intrínseco ou último e que, por conseguinte, um agente moral jamais pode estar sob a obrigação de desejá-los ou escolhê-los como um fim último.

(b) A dignidade, o mérito, o merecimento não podem ser base distinta ou fundamento da obrigação moral no sentido de impor obrigação independentemente do valor ou bem intrínseco. Toda obrigação deve dizer respeito, estritamente, à escolha de um objeto por ele mesmo, com as condições e meios necessários. O valor intrínseco do fim é o fundamento da obrigação de escolher ambos e as condições e meios necessários para garanti-lo. A não ser pelo valor intrínseco do fim, não poderia haver a obrigação de desejar as condições e meios. Sempre que algo é visto como condição ou meio necessário para garantir um fim intrinsecamente valioso, essa relação percebida é a condição de nossa obrigação de desejá-lo. A obrigação é e deve ser fundamentada no valor intrínseco do fim e condicionada à relação percebida do objeto com o fim. A inteligência de todo agente moral, por sua natureza e leis, afirma que o fim último e bem-aventurança dos agentes morais são e devem ser condicionados pela santidade e pelo merecimento deles. Sendo essa uma exigência da razão, a razão jamais pode afirmar uma obrigação moral de desejar a real bem-aventurança de um agente moral, a não ser sob condição de sua virtude e conseqüente merecimento ou mérito. A inteligência afirma que é adequado, conveniente, próprio que a virtude, merecimento, mérito, santidade sejam recompensados com bem-aventurança. A bem-aventurança é um bem em si e deve ser desejada por essa razão, e os agentes morais estão sob a obrigação de desejar que todos os seres capazes de fazer o bem possam ser dignos de gozar de bem-aventurança e, por conseguinte, possam de fato gozá-la. Mas eles não estão sob a obrigação de desejar que cada ser moral de fato goze de bem-aventurança, exceto sob a condição de santidade e merecimento. A relação entre a santidade, mérito, merecimento, etc, e a obrigação moral é a seguinte: eles suprem a condição da obrigação de desejar a bem-aventurança real do ser ou seres que são santos. A obrigação deve ser fundamentada no valor intrínseco do bem que devemos desejar a eles. Pois é absurdo dizer que estamos ou podemos estar sob a obrigação de desejar o bem deles por si ou como um fim último, mas ainda assim que a obrigação não deve ser fundamentada no valor intrínseco do bem. Se não fosse pelo valor intrínseco do bem deles, já não teríamos de afirmar a obrigação de desejar o bem deles, em lugar do mal. O bem ou a bem-aventurança é aquilo, ou o fim, que temos obrigação de desejar. Mas a obrigação de desejar um fim último não pode ser fundamentada em algo além do valor intrínseco do fim. Suponham que se diga que, no caso do mérito ou merecimento, que a obrigação está fundamentada no mérito, sendo condicionada unicamente no valor intrínseco do bem que devo desejar. Isso seria fazer do merecimento o fim desejado, e do bem, só a condição ou meio. Isso seria absurdo.

(c) Mas, de novo, fazer do mérito a base da obrigação e do bem desejado, só uma condição, acarreta o seguinte: percebo o mérito, pelo que afirmo minha obrigação de desejar -- quê? Não o bem aos que merecem, por causa de seu valor para Deus, nem por alguma disposição de vê-lo gozar da bem-aventurança por si, mas por seu mérito. Mas qual o mérito de Deus? Ora, o bem ou a bem-aventurança. É o bem, ou bem-aventurança, que devo desejar para Deus, e esse é o fim que sou obrigado a desejar; ou seja, devo desejar o bem de Deus, ou sua bem-aventurança, pelo próprio valor intrínseco dele. A obrigação, portanto, deve ser fundamentada no valor intrínseco do fim, ou seja, o bem-estar de Deus, ou sua bem-aventurança, sendo só condicionada pelo mérito.

(6) Responderei às objeções.

(a) Objeta-se que, se a virtude é meritória, se tem mérito, merece tudo, isso implica obrigação correspondente e tal mérito ou merecimento deve impor (ou ser base de) uma obrigação de dar aquilo que é merecido. Mas essa objeção ou é uma mera saída pela tangente ou simples logomaquia. Ela pressupõe que as palavras merecimento e mérito significam o que não podem significar. Quem faz a objeção deve lembrar que ele sustenta que a obrigação diz respeito à intenção última. A intenção última deve encontrar a base de sua obrigação exclusivamente em seu objeto. Ora, se o merecimento ou mérito é uma base de obrigação, então o mérito ou merecimento deve ser o objeto da intenção. O merecimento, o mérito, deve ser desejado por si. Mas seria isso o que é merecido, meritório? Um ser meritório merece que seu mérito ou merecimento deva ser desejado por si? Aliás, é isso o que ele merece? É compreensível que falemos de merecimento, o merecimento do bem e do mal; um ser pode merecer que seu merecimento seja escolhido pelo próprio merecimento? Se não, então é impossível que o merecimento ou mérito seja base da obrigação; pois lembrem-se que uma base de obrigação, qualquer que seja, deve ser escolhida por si. Mas se a virtude merece o bem, é manifesto que o valor intrínseco do bem é a base, e o mérito só uma condição da obrigação de desejar que o indivíduo meritório tenha gozo real e particular do bem. Assim, o mérito só muda a forma da obrigação. Se um indivíduo é perverso, devo desejar seu bem como valor em si, e que ele possa cumprir as condições necessárias para a felicidade e, com isso, de fato gozar felicidade. Se ele é virtuoso, devo desejar seu bem ainda pelo seu valor intrínseco; e, uma vez que ele cumpre as condições de gozo, que ele de fato goze de felicidade. Em ambos os casos, sou obrigado a desejar o bem dele, e pela mesma razão fundamental, a saber, seu valor intrínseco. Nem o fato nem a base da obrigação de desejar o bem dele são mudados por sua virtude; só muda a forma da obrigação. Posso ter a obrigação de desejar o mal para um ser em particular, mas nesse caso não estou obrigado a desejar o mal pelo mal e, por conseguinte, não como um fim ou final. Devo às vezes desejar a punição do culpado, não pela punição, mas pelo bem público; e o valor intrínseco do bem a ser promovido é a base da obrigação, e a culpa ou demérito é só uma condição da obrigação nessa forma. Se o mérito ou merecimento for base da obrigação, então o mérito ou merecimento deve ser escolhido por si. Seguir-se-ia disso que o merecimento negativo deveria ser escolhido por si, bem como o merecimento positivo. Mas quem alegaria que o merecimento negativo deve ser desejado por si? Mas se não for possível, então segue-se que o merecimento não é base de obrigação e que não é objeto de escolha última, ou de escolha alguma; só um meio para um fim.

(b) Afirma-se, em apoio à teoria que estamos examinando, que a Bíblia representa a bondade de Deus como razão para amá-lo ou como fundamento da obrigação de amá-lo.

A isso respondo que a Bíblia pode assinalar e de fato assinala a bondade de Deus como razão para amá-lo, mas não se segue que afirme ou pressuponha que essa razão é o fundamento ou um fundamento da obrigação. A pergunta é: em que sentido a Bíblia assinala a bondade de Deus como uma razão para amá-lo? É porque a bondade de Deus é o fundamento da obrigação ou só uma condição da obrigação de desejar sua bem-aventurança real em particular? É sua bondade uma base distinta da obrigação de amá-lo? Mas que é esse amor que sua bondade faz com que recaia sobre nós a obrigação de exercer em relação a ele? Concorda-se que não pode ser uma emoção, que deve consistir em desejar algo para ele. Alguns dizem que a obrigação é de tratá-lo como alguém digno. Mas pergunto: digno de quê? Ele é digno de alguma coisa? Caso positivo, de quê? Pois isso é o que devo desejar para ele. Ele é meramente digno de que eu deseje sua dignidade pela dignidade? Deve ser, caso sua dignidade seja a base da obrigação; pois aquilo que é a base da obrigação de escolher deve ser o objeto da escolha. Ora, ele é digno de bênção, de honra, de louvor. Mas tudo isso deve ser resumido numa única palavra: amor. A lei decidiu de uma vez por todas a questão: que todo nosso dever para com Deus é expresso por esse único termo. É comum fazer afirmações acerca do assunto envolvendo uma contradição da Bíblia. A lei de Deus, conforme revelada nos dois preceitos: "Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e a teu próximo como a ti mesmo", cobre toda a base da obrigação moral (Dt 6.5). A Bíblia ensina de modo expresso e repetido que o amor a Deus e ao próximo é o cumprimento da lei. Aceita-se e é preciso que se aceite que esse amor consiste em desejar algo para Deus e para o próximo. O que, então, deve ser desejado para eles? A ordem é: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19.19). Isso não fala algo sobre o caráter de meu próximo. E o valor do interesse divino, do bem-estar de Deus que a lei requer que eu considere. Ela não requer que eu simplesmente ame meu próximo justo, nem que ame meu próximo justo mais que meu próximo perverso. É a meu próximo que devo amar. Ou seja: devo desejar o bem-estar de Deus, ou seu bem, com as condições e os meios disso, de acordo com seu valor. Se a lei considerasse base distinta da obrigação a virtude de algum ente, não seria possível interpretar dessa forma. Nesse caso, a interpretação teria de ser: "Se fores justo e teu próximo, tão justo quanto és, amarás a ele como a ti próprio, e não teu próximo". A que distância isso estaria da superficialidade dos rabinos judeus censurados de maneira tão veemente por Cristo, a saber: "Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo?" (Mt 5.43, 44, 46)? O fato é que a lei conhece só uma base da obrigação moral. Ela requer que amemos a Deus e ao próximo. Esse amor é boa vontade. Que mais devemos desejar ou temos possibilidade de desejar para Deus e nosso próximo, senão o máximo bem ou bem-estar deles, com todas as condições ou meios decorrentes? Isso é tudo o que pode ter algum valor para eles, e tudo o que podemos ou devemos desejar para eles sob quaisquer circunstâncias. Quando desejamos isso a eles, cumprimos todo o nosso dever para com eles. "O cumprimento da lei é o amor" (Rm 13.10). Nada mais devemos a eles, em absoluto. Eles não podem ter nada mais. Mas isso a lei requer que desejemos para Deus e para o próximo pelo valor intrínseco do bem deles, qualquer que seja o caráter deles; ou seja, isso deve ser desejado para Deus e para nosso próximo, como um bem possível, sejam eles santos ou não, simplesmente por causa de seu valor intrínseco.

Mas enquanto a lei requer que esse seja o desejo em relação a todos, como um bem possível e intrínseco, independentemente do caráter; ela não pode requerer nem requer que desejemos que Deus ou qualquer agente moral em particular seja de fato abençoado, se não sob condição de que seja santo. Nossa obrigação para com os que não são santos é de desejar que possam ser santos e perfeitamente abençoados. Nossa obrigação para com os santos é de desejar que sejam perfeitamente abençoados. Conforme se disse, a virtude só modifica a forma, mas não muda a base da obrigação. A Bíblia apresenta o amor ao inimigo como uma das mais elevadas formas de virtude: "Deus prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.8). Mas se o amor ao inimigo é uma forma elevada e valiosa de virtude, só deve ser porque o verdadeiro espírito da lei exige o mesmo amor para eles como para os outros, e por causa da forte indução a que não se os ame. Quem não considera a virtude da expiação grandiosa, como se tivesse sido realizada por amigos e não por inimigos de Deus? E suponham que Deus fosse extremamente egoísta e irracionalmente nosso inimigo, que não consideraria a boa vontade exercida em relação a Ele tão louvável quanto é agora? Ora, se Ele fosse injustamente nosso inimigo, uma boa vontade sincera em relação a Ele, em tal caso, não seria um exemplo marcante e valioso de virtude? Nesse caso, não conseguiríamos, não poderíamos, desejar sua bem-aventurança real, mas poderíamos e deveríamos estar sob a infinita obrigação de desejar que Ele se tornasse santo e, por conseguinte, perfeitamente abençoado. Estaríamos sob a obrigação de desejar seu bem num sentido tal que Ele se tornasse santo, deveríamos desejar sua bem-aventurança real, sem nenhuma mudança em nossa escolha ou intenção última e sem nenhuma mudança em nós que implicasse aumento de virtude.

Assim também para com nosso próximo: somos obrigados a desejar seu bem, mesmo que ele seja perverso, em um sentido tal que não seja necessária uma nova intenção ou escolha última de desejar sua real bem-aventurança, caso se torne santo. Podemos ser igualmente santos ao amar um pecador e buscar sua salvação enquanto pecador, como em desejar seu bem depois que se converte e se torna santo. Deus era tão virtuoso ao amar o mundo e ao buscar salvá-lo enquanto este estava em pecado, quanto é em amar os santos no mundo. O fato é que se formos verdadeiramente benevolentes e desejar-mos o máximo bem-estar de todos, com as condições e os meios de sua bem-aventurança, segue-se, é claro, necessariamente, que quando alguém se torna santo devemos amá-lo com o amor de benevolência, que desejaremos, é claro, sua real bem-aventurança, vendo que ele cumpriu as condições necessárias e se tornou digno de bem-aventurança. Não implica aumento de virtude em

Deus exercer benevolência para com um pecador quando ele se arrepende. A complacência, como um estado de vontade ou coração, é só benevolência modificada pela consideração ou relação do caráter correto em seu objeto. Deus, os profetas, apóstolos, mártires e santos, em todas as eras, são tão virtuosos em sua abnegação e luta incansável para salvar os perversos, quanto o são em seu amor complacente para com os santos.

Essa é a doutrina universal da Bíblia. Está em perfeito acordo com o espírito e a letra da lei. "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19.19), ou seja, qualquer que seja seu caráter. Essa é a doutrina da razão e concorda com as convicções de todos os homens. Mas, sendo assim, segue-se que a virtude não é uma base distinta da obrigação moral, mas só modifica a forma da obrigação. Temos a obrigação de desejar a bem-aventurança real de um ser moral desde que ele seja santo. Devemos desejar o bem ou bem-aventurança pelo próprio valor disso, independentemente do caráter; mas só devemos desejar o gozo dele, por qualquer indivíduo em particular, só sob condição de sua santidade. Seu valor intrínseco é o fundamento da obrigação, e sua santidade muda não o fato, mas a forma da obrigação, sendo a condição da obrigação de desejar que de fato goze de perfeita bem-aventurança em particular. Quando, pois, a Bíblia nos convoca a amar a Deus por sua bondade, não quer nem pode estar assinalando a razão fundamental ou o fundamento da obrigação de desejar seu bem, pois seria absurdo supor que o bem de Deus deva ser desejado, não pelo seu valor intrínseco, mas porque Ele é bom. Não fosse pelo seu valor intrínseco, de pronto afirmaríamos nossa obrigação de desejar o mal como um bem para Ele. A Bíblia pressupõe as verdades primeiras da razão. É uma verdade primeira da razão que o bem-estar de Deus é de valor infinito, devendo ser desejado como um bem possível, qualquer que seja o caráter dele; e que deva ser desejado como uma realidade de fato, desde que Ele seja santo. Ora, a Bíblia faz nesse caso exatamente como se espera. Ela afirma sua santidade real e infinita e nos convoca a amá-lo ou a desejar seu bem por esse motivo. Mas isso não é afirmar ou implicar que sua santidade é o fundamento da obrigação de desejar seu bem no sentido de não ter a obrigação de desejá-lo de todo o coração, e alma, e mente, e força como um bem possível, quer Ele seja santo, quer não. É claro que a lei só vislumbra o valor intrínseco do fim a ser desejado. Ela requer de nós que desejemos o bem-estar de Deus de todo nosso coração, etc, ou como o bem supremo, qualquer que seja seu caráter. Não fosse assim, não seria uma lei moral. O interesse de Deus seria o bem supremo e infinito, no sentido daquilo que é intrínseca e infinitamente valioso, e deveríamos, por esse motivo, estar sob a infinita obrigação de desejar que possa ser, seja Ele santo ou pecador, e sob condição de santidade, desejar a real existência de sua perfeita e infinita bem-aventurança. Chegando ao nosso conhecimento a santidade de Deus, a obrigação se impõe de imediato, não meramente de desejar seu máximo bem-estar possível, mas como um bem realmente existente.

De novo, é impossível que a bondade, a virtude, o merecimento, o mérito sejam uma base distinta ou fundamento de obrigação moral, no sentido de impor ou aumentar propriamente a obrigação. Foi demonstrado que nenhum deles pode ser um bem último e impor obrigação de escolhê-lo como um fim último ou por seu valor intrínseco.

Mas se a bondade ou mérito pode impor uma obrigação moral de desejar, deve ser uma obrigação de desejá-la como um fim último. Mas isso vimos ser impossível; portanto, essas coisas não podem ser base distinta ou fundamento de obrigação moral.

Mas, de novo, a lei não faz da virtude, merecimento ou mérito a base da obrigação, requerendo que os amemos e os desejemos como um fim último, mas que amemos a Deus e a nosso próximo como um bem maior. Ela requer, sem dúvida, que desejemos o bem, merecimento, mérito de Deus como condição e meio de seu máximo bem-estar e do bem-estar do universo; mas é absurdo dizer que ela requer de nós que desejemos essas coisas como um fim último, em lugar da perfeita bem-aventurança de Deus com que esses fatores só mantêm uma relação de condição. Deve-se compreender de modo distinto que nada pode impor obrigação moral, senão o que seja um bem último e intrínseco; pois, se impõe obrigação, deve ser uma obrigação de escolhê-lo pelo que é e por si. Toda obrigação deve dizer respeito à escolha ou de um fim ou de um meio. A obrigação de escolher meios é fundamentada no valor do fim. Ele precisa possuir em si e por si algo que seja digno de escolha ou mereça escolha como um bem intrínseco e último. Isto vimos: a virtude, o mérito, etc, não podem ser, portanto, um fundamento de obrigação moral. Mas dizem que eles podem aumentar a obrigação de amar a Deus e aos seres santos. Mas estamos sob a infinita obrigação de amar a Deus e desejar seu bem com toda nossa força, por causa do valor intrínseco de seu bem-estar, seja Deus santo ou pecador. Na condição de ser Ele santo, temos a obrigação de desejar sua real bem-aventurança, mas certamente temos a obrigação de desejá-la com nada menos que todo nosso coração, e alma, e mente, e força. Mas isso nos é requerido por causa do valor intrínseco de sua bem-aventurança, qualquer que seja seu caráter. O fato é que não podemos fazer algo mais e não podemos ter a obrigação de fazer algo mais que desejar seu bem com toda nossa capacidade, e isso somos obrigados a fazer por si, e não podemos estar sob a obrigação de nada mais que isso, por motivo algum, qualquer que seja. Nossa

obrigação é de desejar o bem de Deus com toda nossa força em virtude de seu valor infinito e isso não pode ser aumentado por qualquer outra consideração, senão nosso conhecimento ampliado de seu valor, o que amplia nossa capacidade.

(c) Mas dizem que favores recebidos impõem a obrigação de exercer gratidão; que a própria religião do benfeitor impõe a obrigação de tratar o benfeitor de acordo com essa relação.

Resposta: Suponho que a objeção considere virtuosa essa relação, ou seja, que o benfeitor é de fato virtuoso e não egoísta no benefício. Se não, a relação não pode modificar, de maneira alguma, a obrigação.

Se o benfeitor obedeceu à lei do amor no benefício, se cumpriu seu dever ao manter essa relação, tenho a obrigação de exercer gratidão para com ele. Mas que é gratidão? Não é uma mera emoção ou sentimento; pois isso é um fenômeno da sensibilidade e, estritamente falando, fora do âmbito da legislação e da moralidade. A gratidão, quando referida como uma virtude e como algo cuja obrigação moral possa ser afirmada, deve ser um ato de vontade. Uma obrigação de gratidão deve ser uma obrigação de desejar algo para o benfeitor. Mas que tenho obrigação de desejar a um benfeitor, senão seu verdadeiro bem-estar máximo? Se for Deus, tenho a obrigação de desejar sua bem-aventurança real e infinita com todo meu coração e com toda minha alma. Se for meu próximo, sou obrigado a amá-lo como a mim mesmo, ou seja, desejar seu verdadeiro bem-estar como o desejo para mim mesmo. Que mais pode Deus ou o homem possuir ou desfrutar e que mais posso ser obrigado a desejar para eles? Respondo: nada mais. A lei e ao testemunho: se alguma filosofia não concorda com isso, é porque nela não há luz. A relação virtuosa do benfeitor modifica a obrigação, exatamente como o faz qualquer outra e todas as outras formas de virtude, e de nenhum outro modo. Sempre que percebemos virtude em algum ser, isso preenche a condição pela qual somos obrigados a desejar seu verdadeiro bem-estar máximo. Ele fez seu dever. Ele cumpriu a obrigação na relação que mantém. Ele é fiel, correto, benevolente, justo, misericordioso, não importa a forma particular pela qual o indivíduo apresente para mim a evidência de seu caráter santo. É tudo exatamente igual no que diz respeito à amplitude de minha obrigação. Tenho, independentemente de meu conhecimento de seu caráter, a obrigação de desejar seu máximo bem-estar por si. Ou seja, desejar que Ele possa cumprir todas as condições e, com isso, desfrutar de perfeita bem-aventurança. Mas não tenho a obrigação de desejar que de fato desfrute de bem-aventurança até que eu tenha prova de sua virtude. Essa prova, seja como for que eu a obtenha, quaisquer que sejam as manifestações de virtude nele ou quaisquer que sejam os meios, supre a condição pela qual tenho a obrigação de desejar seu verdadeiro gozo ou máximo bem-estar. Essa é toda a minha obrigação. É tudo o que posso ter e tudo o que posso desejar para Ele. Todas as objeções desse tipo e, aliás, todas as objeções possíveis à verdadeira teoria, e em apoio à teoria que estou examinando, são fundamentadas numa concepção errônea da questão da obrigação moral, ou numa filosofia falsa e anti-bíblica que contradiz a lei de Deus e estabelece outra regra de obrigação moral.

De novo, se a gratidão é um ato moral, de acordo com quem faz a objeção, é uma intenção última e, como tal, deve terminar em seu objeto e encontrar suas razões ou base da obrigação exclusivamente em seu objeto. Sendo assim, se a relação do benfeitor é a base da obrigação de exercer gratidão, a gratidão deve consistir em desejar essa relação por si, e de modo algum em desejar algo para o benfeitor. Isso é absurdo. E certo que a gratidão deve consistir em desejar o bem para o benfeitor e não em desejar a relação por si, e que a base da obrigação deve ser o valor intrínseco do bem, e a relação, só uma condição da obrigação na forma particular de desejar que desfrute de um bem em particular. Diz-se agora, em réplica a isso, que "a pergunta não é: que é gratidão? mas, por que devemos exercê-la?" Mas a pergunta busca a base da obrigação; isso, concorda-se, deve ser intrínseco ao objeto, e seria impertinente inquirir qual é o objeto? Quem pode dizer qual é a base da obrigação de exercer gratidão até saber qual é o objeto da gratidão e, por conseguinte, qual é a gratidão? Quem faz objeção afirma que a relação do benfeitor é a base da obrigação de levar adiante a escolha última. E claro que, de acordo com ele, e de fato, se essa relação é a base da obrigação, então é e deve ser o objeto escolhido por si, então exercer gratidão a um benfeitor, de acordo com esse ensino, é não desejar algum bem para ele, nem para mim, nem para algum ser existente, mas simplesmente desejar a relação de benfeitoria por si. Não pelo benfeitor, como um bem para ele. Não por mim, como um bem para mim, mas pela própria benfeitoria. Não é sublime essa filosofia?

(d) Mas também se insiste que quando os homens tentam assinalar a razão pela qual têm uma obrigação moral de algum tipo, como a de amar a Deus, todos concordam com isso, em assinalar a excelência moral divina como a razão dessa obrigação.

Resposta: A única razão pela qual um homem supõe assinalar a bondade de Deus como o fundamento da obrigação de desejar o bem para Ele é que confunde vagamente as condições da obrigação de desejar a real bem-aventurança de Deus com o fundamento da obrigação de desejá-la por si ou como um bem possível. Não fosse pelo conhecimento do valor intrínseco do máximo bem-estar de Deus, logo deveríamos afirmar nossa obrigação de desejar o mal como um bem para Ele, conforme se disse. Mas se a excelência moral divina fosse o fundamento da obrigação moral, se Deus não fosse santo e bom, a obrigação moral não poderia existir de modo algum.

Que todo agente moral deve desejar o máximo bem-estar de Deus e de todo o universo por si, como um bem possível, quaisquer que sejam as características deles, é uma verdade da razão. A razão não assinala nem pode assinalar alguma outra razão, que não seu valor intrínseco, para desejar o bem deles como um fim último; e assinalar alguma outra razão que imponha a obrigação de desejá-lo como um fim ou por si seria absurdo e contraditório. A obrigação de desejá-la como um fim por si implica a obrigação de desejar sua real existência em todos os casos e para todas as pessoas, preenchidas as condições indispensáveis. Essas condições são consideradas compridas em Deus e, portanto, sob essa condição a razão afirma a obrigação de desejar sua verdadeira e máxima bem-aventurança por si, sendo o valor intrínseco a razão fundamental para a obrigação de desejá-la como um fim, e a bondade divina a condição da obrigação de desejar sua bem-aventurança máxima em particular. Suponham que eu existisse e que tivesse a idéia da bem-aventurança e de seu valor intrínseco devidamente desenvolvidos, juntamente com uma idéia de todas as condições necessárias dela; mas não soubesse da existência de algum outro ser, exceto da minha própria, ainda assim soubesse ser possível a existência e a bem-aventurança de outros seres; nesse caso, eu teria a obrigação de desejar que os seres existissem e fossem abençoados. Agora suponham que eu cumprisse essa obrigação, minha virtude seria real e grande, exatamente como seria se eu soubesse da existência deles e desejasse a verdadeira bem-aventurança deles, desde que minha idéia do valor intrínseco disso estivesse clara e fosse exatamente como se eu soubesse da existência deles. E agora suponham que eu viesse a saber da real existência e santidade de todos os seres santos, eu não faria alguma nova escolha última ao desejar a real bem-aventurança deles. Isso eu faria, é claro, e, permanecendo benevolente, por necessidade; e se esse conhecimento não me desse uma idéia mais elevada do valor daquilo que eu antes desejava por si, o desejar da existência real da bem-aventurança deles não me faria nem um pouco mais virtuoso que quando eu o desejava como um bem possível, sem saber que as condições de sua real existência seriam, em algum momento, cumpridas.

A Bíblia deve ser interpretada exatamente como se espera que seja interpretada, e exatamente como devemos falar no cotidiano. Sendo uma verdade da razão que o bem-estar de Deus é de valor infinito, devendo, portanto, ser desejado por si, sendo também verdade que a virtude é uma condição indispensável para o cumprimento das exigências da própria razão e consciência de Deus, e evidentemente de sua real bem-aventurança e evidentemente também uma condição da obrigação de desejá-lo, devemos esperar que a Bíblia nos exorte a amar a Deus ou desejar sua real bem-aventurança e exija isso de nós, e mencione sua virtude como a razão ou condição preenchida da obrigação, em lugar do valor intrínseco de sua bem-aventurança como o fundamento da obrigação. O fundamento da obrigação, sendo uma verdade da razão, não precisa ser um assunto de revelação. Também não necessita do fato de que a virtude é a condição da bem-aventurança de Deus, nem do fato de que temos a obrigação de desejar sua real bem-aventurança, mas sob condição de sua santidade. Mas que nele essa condição é cumprida deve ser incutido em nós, e assim a Bíblia o anuncia como uma razão ou condição da obrigação de amá-lo, ou seja, de desejar sua real bem-aventurança.

A excelência moral de Deus é, natural e corretamente, assinalada por nós como uma condição, não a base da obrigação de receber sua vontade revelada como nossa lei. Se não tivéssemos pressuposto a retidão da vontade divina, não poderíamos afirmar nossa obrigação de recebê-la como uma regra de dever. Essa pressuposição é uma condição da obrigação, sendo naturalmente cogitada quando se afirma a obrigação de obedecer a Deus. Mas o valor e a importância intrínseca do interesse que Ele requer que busquemos é a base da obrigação.

(e) De novo: afirma-se que quando os homens despertam um senso de obrigação moral, contemplam universalmente a excelência moral de Deus como a razão de sua obrigação e que se essa contemplação não desperta seu senso de obrigação, nada mais pode fazê-lo.

Resposta: A única razão possível pela qual os homens em algum momento tomam ou podem tomar esse curso é que eles vagamente consideram que a religião consiste em sentimentos de satisfação em Deus, e estão se empenhando para despertar essas emoções de satisfação. Se conceberam que a religião consiste nessas emoções, evidentemente conceberão estar sob a obrigação de exercê-las e de garantir que tomaram o único curso possível para despertar essas emoções e um senso de obrigação de exercê-las. Mas eles estão enganados, com respeito à sua obrigação, bem como com a natureza da religião. Se concebessem que a religião consiste em boa vontade ou em desejar o máximo bem-estar de Deus e do universo por si, poderiam recorrer ao processo em questão, ou seja, a contemplação da excelência moral divina, como a única razão para desejar o bem para Deus, em lugar de considerar o valor infinito daqueles interesses para cuja realização devem consagrar a si mesmos?

Se os homens com freqüência recorrem ao processo em questão, é porque amam sentir e têm uma satisfação auto-suficiente em sentimentos de contentamento em Deus, e empenham-se mais por despertar esses sentimentos que em reanimar e alargar sua benevolência. Um ser puramente egoísta pode ser grandemente tocado pela enorme bondade e generosidade de Deus para com ele. Conheço um homem muito avarento no que diz respeito a toda doação e ação para Deus e para o mundo e que, temo, recorre ao próprio processo em questão, sendo com freqüência muito tocado pela bondade de Deus. Ele pode vociferar e denunciar todos os que não o sentem como ele. Mas peça-lhe um dólar para desenvolver qualquer empreendimento benevolente, e ele se evadirá de seu pedido, perguntando como você se sente, se você está empenhado na religião, etc.

Mas bem se pode perguntar: por que a Bíblia e por que nós apresentamos com tanta freqüência o caráter de Deus e de Cristo como um meio de despertar um senso de obrigação moral e de induzir virtude?

Resposta: E para levar os homens a contemplar o valor infinito daqueles interesses que ele deve desejar. Apresentar o exemplo de Deus e de Cristo é o máximo meio moral que pode ser usado. O exemplo de Deus e o exemplo do homem é o modo mais impressionante e eficiente pelo qual Deus pode declarar suas idéias e oferecer para observação pública o valor infinito daqueles interesses em que todos os corações devem fixar-se. Por exemplo, nada pode estabelecer o valor infinito da alma com luz mais forte do que fez o exemplo de Deus, o Pai, Filho e Espírito Santo.

Nada pode gerar um senso mais elevado de obrigação de desejar a glória do Pai e a salvação das almas, que o exemplo de Cristo. Seu exemplo é seu discurso mais veemente. Sua exibição mais clara, mais impressionante, não meramente da própria bondade, mas do valor intrínseco e infinito do interesse que buscou e que devemos buscar. É o amor, o cuidado, a abnegação e o exemplo de Deus em seus esforços para garantir os grande fins da benevolência que destacam esses interesses na mais forte luz, e assim geram um senso de obrigação de buscar o mesmo fim. Mas deve-se observar que não é uma contemplação da bondade de Deus que desperta esse senso de obrigação, mas a contemplação do valor daqueles interesses que ele busca, à luz de seu sofrimento e exemplo; isso estimula o senso de obrigação de desejar o que Deus deseja e dá eficiência a esse senso. Suponha, por exemplo, que eu manifeste o maior interesse e zelo pela salvação das almas; não seria a contemplação de minha bondade que animaria num observador um senso de obrigação de salvar almas, mas meu zelo, e vida, e espírito, teria uma forte tendência de gerar nele um senso do infinito e intrínseco valor da alma, e assim instigar um senso de obrigação. Se eu visse multidões correndo para extinguir as chamas que consumissem uma casa, não seria uma contemplação da bondade deles, mas a contemplação dos interesses em jogo, que o zelo deles me levaria a considerar, que me instigaria um senso de obrigação para apressar-me e emprestar meu auxílio.

A revelação importa-se em imprimir o fato de que Deus é santo, e, é claro, convocar-nos, em vista de sua santidade, a amá-lo e cultuá-lo. Mas ao fazê-lo, não significa, não pode significar, que sua santidade seja o fundamento da obrigação de desejar seu bem como um fim último.

Nossa obrigação, quando vista à parte do caráter de Deus, é desejar ou querer que Deus possa cumprir todas as condições de perfeita bem-aventurança e, sob essa condição, possa de fato gozar de perfeita e infinita satisfação. Mas visto que Ele cumpre as demandas da própria inteligência e da inteligência do universo e que voluntariamente cumpre todas as condições necessárias de seu máximo bem-estar, nossa obrigação é desejar sua real e mais perfeita e eterna bem-aventurança.

Sou obrigado a repetir muito para seguir aquele que faz objeções, porque todas as suas objeções resumem-se em uma, requerendo que sejam respondidas da mesma forma.

 

Passo agora a considerar a filosofia que ensina

que a ordem moral é o fundamento da obrigação moral.4

Mas que é ordem moral? Os defensores dessa teoria definem-na como idêntica ao que é adequado, próprio, conveniente. É, portanto, de acordo com eles, sinônimo de direito. A ordem moral deve ser, no entender deles, idêntica ou à lei ou à virtude. Deve ser ou uma idéia de adequação, propriedade, conveniência, que é o mesmo que direito objetivo; ou deve consistir em conformidade da vontade com essa idéia de lei, que é virtude. Demonstrou-se repetidas vezes que o direito, quer objetivo, quer subjetivo, não pode ser em hipótese alguma o fim que um agente moral deva almejar e a que se deva consagrar. Se ordem moral não for sinônimo de direito em um desses sentidos, não sei o que é; e tudo que posso dizer é que se não for idêntica ao máximo bem-estar de Deus e do universo, não poder ser o fim que os agentes morais devem almejar, e não pode ser o fundamento da obrigação moral. Mas se por ordem moral, como a fraseologia de alguns parece indicar, entender-se aquele estado de bem-estar universal, essa teoria é só outro nome para a verdadeira. E o mesmo que desejar o máximo bem-estar do universo, com a condição e os meios disso.

Ou se significar, como outra fraseologia pareceria indicar, que ordem moral é um estado de coisas em que ou toda a lei é obedecida ou os desobedientes são punidos para promoção do bem público; se é isso o que se entende por ordem moral, é só outro nome para a teoria verdadeira. Desejar a ordem moral é só desejar o máximo bem do universo por si, com a condição e os meios disso.

Mas se por ordem moral entende-se o adequado, conveniente, no sentido de lei física ou moral, é absurdo representar a ordem moral como o fundamento da obrigação moral. Se a ordem moral é a base da obrigação, é idêntica ao objeto de escolha última. Será que Deus exige que amemos a ordem moral por ela mesma? É isso idêntico a amar a Deus e ao próximo? "Desejarás a ordem moral com todo o teu coração, com toda a tua alma!". E esse o significado da lei moral? Se essa teoria estiver correta, a benevolência é pecado. Não é viver para o fim correto.

 

De novo sustenta-se que a natureza e relações dos seres morais são o verdadeiro fundamento da obrigação moral.

Os defensores dessa teoria confundem as condições da obrigação moral com o fundamento da obrigação. A natureza dos agentes morais e suas relações uns com os outros e com o universo são condições de sua obrigação de desejar o bem do ser, mas não o fundamento da obrigação. Quê! A natureza e relações dos seres morais são o fundamento de sua obrigação de escolher um bem último! Então esse fim deve ser sua natureza e relações. Isso é absurdo. Sua natureza e relações sendo o que são, o máximo bem-estar deles lhes é conhecido como de valor infinito e intrínseco. Mas é e deve ser o valor intrínseco do bem e não sua natureza e relações o que impõe a obrigação de desejar o máximo bem do universo como um fim último.

Se sua natureza e relações for a base da obrigação, então sua natureza e relações são o grande objeto de escolha última e devem ser desejados pelo que são, não por algum bem que resulte de sua natureza e relações. Pois, lembrem-se, a base da obrigação de desenvolver a escolha última deve ser idêntica ao objeto dessa escolha; tal objeto impõe obrigação em virtude de sua própria natureza.

A natureza e relações dos seres morais são uma condição da obrigação de cumprir certos deveres mútuos. Por exemplo, a relação de pai e filho é uma condição da obrigação de empenho mútuo para promover o bem-estar um do outro, de governar e prover, da parte do pai, e de obedecer, etc, da parte do filho. Mas o valor intrínseco do bem a ser buscado por ambos, pai e filho, deve ser a base, e a relação deles, somente a condição, daquelas formas particulares de obrigação. O mesmo ocorre em todos os casos possíveis. As relações jamais podem ser base da obrigação de escolher, a menos que as relações sejam o objeto de escolha. Os vários deveres da vida são atos executivos e não últimos. A obrigação de desempenhá-los é fundamentada na natureza intrínseca do bem resultante de sua execução. As várias relações da vida são apenas condições da obrigação de promover formas particulares do bem, e o bem de indivíduos específicos.

Escritores que tratam do assunto com freqüência resvalam no erro de confundir as condições com o fundamento da obrigação moral. A agência moral é uma condição, mas não o fundamento da obrigação. A luz ou o conhecimento do que seja intrinsecamente valioso para o ser é uma condição, mas não o fundamento da obrigação moral. O que seja intrinsecamente valioso é o fundamento da obrigação; e a luz, ou a percepção do que seja intrinsecamente valioso, é só uma condição da obrigação. Assim, a natureza e relações dos seres morais são uma condição de sua obrigação de desejar o bem uns dos outros e assim também a luz ou um conhecimento do valor intrínseco de sua bem-aventurança; mas só o valor intrínseco é o fundamento da obrigação. E, portanto, um grande erro afirmar que "a natureza e as relações conhecidas dos agentes morais são o verdadeiro fundamento da obrigação moral".

 

A próxima teoria que exige atenção ensina que a obrigação moral é fundamentada na idéia do dever.

De acordo com essa filosofia, o fim que um agente moral deve almejar é o dever. Ele precisa em tudo "ter por alvo cumprir seu dever". Ou, em outras palavras, ele deve sempre ter respeito para com sua obrigação e almejar cumpri-la.

É evidente que essa teoria é só outra forma de declarar a teoria do direito. Por almejar, intentar o cumprimento do dever, precisamos compreender que os advogados dessa teoria entendem a adoção de uma resolução ou máxima pela qual regulam a vida -- a formação de uma decisão de obedecer a Deus -- servir a Deus -- fazer em todo o tempo o que parece direito -- seguir as exigências da consciência -- obedecer à lei -- cumprir a obrigação, etc. Expressei isso de fato de todas essas maneiras porque é comum ouvir essa teoria expressa em todos esses termos e em outros como esses. Especialmente quando se instruem pecadores em atitude de busca, nada é mais comum para os que se professam guias espirituais, do que assumir a verdade dessa filosofia e dar instruções de acordo com ela. Esses filósofos ou teólogos dizem aos pecadores: Decida-se a servir ao Senhor; resolva cumprir todo o seu dever e cumpri-lo o tempo todo; resolva obedecer a Deus em tudo -- guardar todos os seus mandamentos; resolva negar a si mesmo -- abandonar o pecado -- amar ao Senhor de todo o coração e ao teu próximo como a si próprio. Eles muitas vezes apresentam a regeneração como algo que consiste nessa resolução ou propósito.

Fraseologias desse tipo, muito comuns e quase universais entre filósofos defensores da teoria do direito, demonstram que eles entendem que a virtude ou obediência consiste na adoção de uma máxima de vida. Para eles, o dever é a grande idéia a ser concretizada. Todos esses modos de expressão significam a mesma coisa, e só remontam à moralidade de Kant, que ele admite não implicar necessariamente religião, ou seja: "agir de acordo com uma máxima em todo momento adequada para uma lei universal", e à de Cousin, que é o mesmo, ou seja: "deseje o direito pelo direito". Ora, só posso tomar essa filosofia numa mão e o utilitarismo na outra, considerando-os igualmente distantes da verdade, colocadas no fundamento de muita religião espúria com que a Igreja e o mundo são amaldiçoados. O utilitarismo gera um tipo de egoísmo a que chama religião, e essa filosofia gera outra, em alguns aspectos mais enganadora, mas nem um pouco menos egoísta, desonrosa para Deus e destrutiva para a alma. O mais próximo que se pode dizer que essa filosofia aproxima-se ou da verdadeira moralidade ou religião é que se a pessoa que forma a resolução compreendesse a si mesmo, tomaria a decisão de tornar-se verdadeiramente moral, em vez de realmente tornar-se. Mas isso é de fato um absurdo e uma impossibilidade; e quem toma a decisão não compreende o que está para fazer quando supõe estar tomando ou alimentando a decisão de cumprir seu dever. Observem que ele pretende cumprir seu dever. Mas cumprir o dever é ter e nutrir uma intenção última. Intentar cumprir o dever é meramente intentar a intenção. Mas isso não é cumprir o dever, conforme se verá. Qualquer que seja seu intento, ele não é verdadeiramente moral nem religioso até que de fato intente o mesmo fim que Deus; e isso não é cumprir seu dever, nem fazer o direito, nem cumprir a obrigação, nem manter a consciência isenta de ofensas, nem negar-se a si mesmo, e nada desse gênero. Deus almeja e intenta o máximo bem-estar dele próprio e do universo como um fim último e isso é cumprir o dever dele. Não é Deus decidir ou intentar fazer o dever dele, mas fazê-lo. Não é Deus decidir fazer o direito pelo direito, mas fazer o direito. Não é Deus resolver servir a si mesmo e ao universo, mas de fato executar tal serviço. Não é Deus resolver amar, mas de fato amar o próximo como a Ele mesmo. Não é, em outras palavras, Deus resolver ser benevolente, mas sê-lo. Não é Deus resolver negar a si mesmo, mas de fato negar-se.

Um homem pode resolver servir a Deus sem nenhuma idéia justa do que seja servir a Ele. Se tivesse de modo claro na mente a idéia do que a lei de Deus exige que ele escolha -- se percebesse que servir a Deus é nada menos que consagrar-se ao mesmo fim a que Deus se consagra, amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo, ou seja, desejar ou escolher o máximo bem-estar de Deus e do universo como um fim último -- devotar todo o seu ser, substância, tempo e influência para esse fim -- digo, se essa idéia estivesse clara diante de sua mente, ele não falaria em resolver consagrar-se a Deus -- resolver cumprir seu dever, fazer o direito, servir a Deus, manter a consciência livre de ofensas e coisas desse tipo. Ele veria que tais resoluções seriam totalmente absurdas e uma mera fuga daquilo que Deus reclama. Foi mostrado repetidas vezes que toda virtude resume-se no intento de um fim último ou do máximo bem-estar de Deus e do universo. Essa é a verdadeira moralidade, e nada mais é. Isso é idêntico àquele amor a Deus e ao homem requerido pela lei de Deus. Isso, portanto, é dever. Isso é servir a Deus. Isso é manter a consciência livre de ofensas. Isso é direito, e nada mais é. Mas intentar ou resolver fazer isso é só intentar o intento, em vez de logo intentar o que Deus requer. É resolver amar a Deus e ao próximo, em vez de realmente amá-los; é escolher escolher o máximo bem-estar de Deus e do universo, em vez de realmente escolhê-lo.

Uma coisa é um homem que de fato ama a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo resolver conduzir toda sua vida exterior pela lei de Deus; outra, totalmente diferente, é intentar amar a Deus ou intentar sua máxima glória e bem-estar. Resoluções podem dizer respeito a atos externos, mas é totalmente absurdo intentar ou resolver formar uma intenção última. Mas lembrem-se que a moralidade e a religião não dizem respeito a atos externos, mas a intenções últimas. E impressionante e aflitivo testemunhar a dimensão alarmante em que uma filosofia espúria corrompeu e está corrompendo a Igreja de Deus. Kant, Cousin e Coleridge adotaram uma fraseologia e conceberam manifestamente em tese uma filosofia subversiva contra todo verdadeiro amor a Deus e ao homem, e ensinam uma religião de máximas e resoluções, em lugar de uma religião de amor. Essa é uma filosofia que, conforme veremos numa aula futura, ensina que a lei moral ou a lei do direito é inteiramente distinta da lei da benevolência ou amor, podendo ser oposta a ela. O fato é que essa filosofia entende que o dever e o direito só dizem respeito ao ato externo. E preciso que seja assim, pois não pode ser suficientemente confuso falar de resolver ou intentar formar uma intenção última. Basta deixar que a verdade dessa filosofia seja assumida ao dar instruções ao pecador ansioso, e isso de imediato secará suas lágrimas e, com toda probabilidade, levá-lo a se fixar de uma religião de resoluções em vez de uma religião de amor. Aliás, essa filosofia secar-se-á de imediato (se me permitem a expressão) o mais genuíno e poderoso avivamento da religião, reduzindo-o a um mero aviva-mento de uma filosofia sem coração, sem Cristo e sem amor. É muito mais fácil persuadir pecadores ansiosos a resolver cumprir seu dever, resolver amar a Deus, que persuadi-los realmente a cumprir seu dever e a realmente amar a Deus de todo o coração e de toda a alma, e ao próximo como a si mesmos.

 

Passamos agora à consideração daquela filosofia que ensina a complexidade do fundamento da obrigação moral.

Essa teoria sustenta que há algumas bases distintas da obrigação moral; que o máximo bem do ser é só uma das bases da obrigação moral, enquanto o direito, a ordem moral, a natureza e relações dos agentes morais, o mérito e demérito, a verdade, o dever e muitos fatores semelhantes são bases distintas da obrigação moral, mas que cada um deles pode por si impor a obrigação moral. Os defensores dessa teoria, percebendo sua disparidade com a doutrina de que a obrigação moral só diz respeito à escolha última, parecem dispostos a desistir da posição de que, estritamente, a obrigação só diz respeito à escolha de um fim último e a sustentar que a obrigação moral diz respeito à ação última da vontade. Por ação última da vontade querem dizer, caso eu os tenha compreendido, o tratamento que a vontade dá a cada coisa de acordo com sua natureza e caráter intrínseco; ou seja, tratar cada coisa ou tomar tal atitude a respeito de cada coisa conhecida pela mente de maneira exatamente adequada ao que é em si e por si. Por exemplo, o direito deve ser considerado e tratado pela vontade como direito porque é direito. A verdade deve ser considerada e tratada como verdade por si, a virtude como virtude, o mérito como mérito, o demérito como demérito, o útil como útil, o belo como belo, o bom ou valioso como valioso, no sentido de que sua ação termina nesses objetos como últimos; em outras palavras, que todas essas ações da vontade são últimas que tratam as coisas de acordo com sua natureza e caráter, ou de acordo com o que são em si e por si.

Ora, a respeito dessa teoria, eu perguntaria: Que se entende quando se diz que a vontade trata algo ou toma em relação a ele uma atitude adequada à sua natureza e caráter? Existem outras ações da vontade, além da volição, escolha, preferência, intenção? Todas as ações da vontade não estão compreendidas nessas? Se há alguma outra ação, além dessas, são ações inteligentes? Nesse caso, quais são as ações da vontade que não consistem nem na escolha de fins ou meios nem em volições ou esforços para garantir um fim? Pode haver atos inteligentes da vontade que não digam respeito a fins ou meios? E possível haver atos morais da vontade quando não há escolha ou intenção? Se há escolha ou intenção, não há necessidade que respeitem um fim ou meio? Que então se entende por ação última da vontade em distinção à escolha ou intenção última? E possível haver escolha sem um objeto de escolha? Se há um objeto de escolha, é necessário que esse objeto não seja escolhido como um fim ou como um meio? Se como um fim último, como isso difere da intenção última? Se como um meio, como isso pode ser considerado uma ação última da vontade? Que se pode entender por ações da vontade que não sejam ações de escolha nem de volição? Não consigo conceber nenhuma outra. Mas se todos os atos da vontade devem necessariamente consistir em desejar ou não desejar, ou seja, em escolher ou rejeitar, o que é o mesmo que escolher um caminho ou outro a respeito de todos os objetos de escolha apreendidos pela mente, como pode haver algum ato inteligente da vontade que não consista em ou que não possa ou não deva, em última análise, ser reduzido a uma escolha de um fim ou meio ou a um esforço executivo para garantir um fim e ser assim propriamente considerado? A lei moral pode requerer qualquer outra ação da vontade além da escolha e volição? Que outras ações da vontade nos são possíveis? Qualquer que seja a exigência da lei moral, ela só deve e pode exigir escolhas e volições. Ela só pode requerer de nós que escolhamos fins ou meios. Ela não pode requerer que escolhamos como um fim último nada que não seja intrinsecamente digno de escolha -- nem como um meio nada que não mantenha essa relação.

Em segundo lugar, vamos examinar essa teoria à luz da lei revelada de Deus. Toda a lei é cumprida em uma palavra -- amor. Ora, vimos que a vontade de Deus não pode ser o fundamento da obrigação moral. A obrigação moral deve ser fundamentada na natureza daquilo que a lei moral requer que escolhamos. A menos que haja, na natureza daquilo que a lei moral requer que desejemos, algo que o torne digno ou merecedor de escolha, não podemos ter a obrigação de desejá-lo ou escolhê-lo. Aceita-se que o amor requerido pela lei de Deus deve consistir num ato da vontade e não em meras emoções. Ora, esse amor, desejo, escolha, abrange vários fins últimos distintos? Nesse caso, como todos eles podem ser expressos em uma palavra -- amor? Observem: a lei só requer amor a Deus e ao próximo como um fim último. Esse amor ou desejo deve dizer respeito a Deus e ao próximo e terminar neles. A lei nada diz sobre desejar o direito pelo direito, ou a verdade pelo direito, ou o belo pelo belo, ou a virtude pela virtude, ou a ordem moral pela ordem moral, ou a natureza e as relações dos agentes morais por elas mesmas; nem tal coisa pode ser implicada no mandamento de amar a Deus e ao nosso próximo. Todos eles e inumeráveis outros são e devem ser condições e meios do máximo bem-estar de Deus e do próximo. Como tal, ao requer que desejemos o máximo bem-estar de Deus e de nosso próximo como um fim último, a lei pode requerer e, sem dúvida, requer que desejemos tudo isso como as condições e meios necessários. O fim que a lei revelada requer que desejemos é inegavelmente simples, ao contrário de complexo. Ela só requer amor a Deus e ao nosso próximo. Uma palavra expressa toda a obrigação moral. Ora, com certeza essa palavra não pode possuir um significado complexo num sentido tal que inclua vários objetos de amor ou escolha últimos e distintos. Esse amor deve terminar em Deus e no próximo, e não em abstrações, nem em existências inanimadas e insensíveis. Protesto contra qualquer filosofia que contradiga a lei revelada de Deus e que ensine que algo além de Deus e de nosso próximo deva ser amado por si, ou que algo além do máximo bem-estar de Deus e do nosso próximo deva ser escolhido como um fim último. Em outras palavras, rejeito por completo qualquer filosofia que torne obrigatório a um agente moral algo que não esteja expresso ou implícito na perfeita boa vontade para com Deus e para o universo de existências sensíveis. À palavra e ao testemunho: se alguma filosofia não concorda com isso, é porque não possui em si luz. A lei revelada de Deus só conhece uma base ou fundamento da obrigação moral. Ela só requer uma coisa: e isso é exatamente que se tenha para com Deus e para com o próximo aquela atitude da vontade que esteja de acordo com o valor intrínseco do máximo bem-estar deles; que a dignidade moral de Deus seja desejada como um valor infinito, como condição do próprio bem-estar de Deus, e que sua real e perfeita bem-aventurança seja desejada por si e porque ele é digno ou sob condição de que seja digno, e que se nosso próximo for digno de felicidade, sua real e máxima felicidade seja desejada. Essa lei só conhece um fim que os agentes morais têm obrigação de buscar e reduz a nada todas as chamadas ações últimas da vontade que não terminem no bem de Deus e de nosso próximo. A escolha última, com a escolha de todas as condições e meios do máximo bem-estar de Deus e do universo é tudo o que a lei revelada reconhece estar no âmbito de sua legislação. Ela não requer nada mais e nada menos.

Mas há outra forma da teoria complexa da obrigação moral que devo examinar antes de dispensar o assunto.

Essa teoria aceita e sustenta que o bem, ou seja, o que seja valioso para o ser, é a única base da obrigação moral e que em todos os casos possíveis o que seja valioso para o ser, ou o bem, deve ser intentado como um fim, como uma condição da intenção virtuosa. A esse respeito ela sustenta que o fundamento da obrigação moral é simples, uma unidade. Mas também sustenta que há alguns bens últimos que, portanto, devem ser escolhidos por si ou como um fim último; que escolher algum desses como um fim último ou por si é virtude.

Ela aceita que a felicidade ou bem-aventurança é um bem e deve ser desejada por si ou como um fim último, mas sustenta que a virtude é um bem último; que o direito é um bem último; que o justo e verdadeiro são bens últimos; em suma, que a realização das idéias da razão ou que transpor para a existência concreta a idéia da razão é um bem último. Por exemplo: na mente divina havia desde a eternidade idéias de bem ou valor, do direito, do justo, do belo, do verdadeiro, do útil, do santo; a realização dessas idéias da razão divina, de acordo com essa teoria, era o fim que Deus almejava ou intentava na criação; Ele almejava a realização deles como bens últimos ou por si, e enxergava a realização concreta de cada uma dessas idéias um bem distinto e último; e tão certo como Deus é virtuoso, diz essa teoria, também é certo que de nossa parte a intenção de realizar essas idéias a bem da realização é virtude. Então, o fundamento da obrigação moral é complexo no sentido de que desejar o bem ou valor, o direito, a verdade, o justo, o virtuoso, o belo, o útil, etc, por si ou como um fim último é virtude, e há mais que uma escolha ou intenção última virtuosa. Assim, qualquer um dos vários itens distintos pode ser intentado como um fim último com igual propriedade e com igual virtuosismo. A alma pode em um momento estar totalmente consagrada a um fim, ou seja, a um bem último, depois a outro, ou seja, às vezes pode desejar um bem e, às vezes, outro bem como um fim último e ainda ser igualmente virtuosa.

Na discussão desse assunto pergunto: Em que consiste o bem supremo e último?

1. O bem pode ser natural ou moral. Bem natural é sinônimo de valor. Bem moral é sinônimo de virtude. O bem moral é, em certo sentido, um bem natural, ou seja, é valioso com um meio de bem natural; mas os defensores dessa teoria afirmam que o bem moral é valioso em si.

2. O bem pode ser absoluto ou relativo. O bem absoluto é o intrinsecamente valioso. O bem relativo é valioso como um meio. Ele não é valioso em si, mas valioso porque mantém como o bem absoluto a relação de meio para um fim. O bem absoluto pode ser também um bem relativo, ou seja, pode tender a perpetuar e a aumentar a si mesmo. O bem absoluto é também último. O bem último é aquele bem em que terminam todos os bens relativos -- o bem com que todos os bens relativos mantêm uma relação de meio ou condição. O bem relativo não é intrinsecamente valioso, mas só valioso em razão de suas relações.

O ponto sobre o qual se discute é que o prazer, a bem-aventurança, uma satisfação mental, é o único bem último.

Já se observou antes e deve-se repetir que o valor intrínseco deve não só pertencer a seres sensíveis, mas ser inseparável deles, mas que o bem último ou intrínseco deve consistir num estado mental. Deve ser algo encontrado no campo da consciência. Tire-se a mente, e o que pode ser um bem per se; ou o que pode ser um bem em qualquer sentido?

De novo, deve-se dizer que o bem último e absoluto não pode consistir em uma escolha ou num estado mental voluntário. O objeto escolhido é e deve ser o máximo da escolha. A escolha jamais pode ser escolhida como um fim último. A benevolência, então, ou o amor requerido pela lei, jamais pode ser o bem último e absoluto. Aceita-se que a bem-aventurança, o prazer, a satisfação mental, é um bem; um bem absoluto e último. Todos os homens o aceitam. Todos os homens procuram o prazer. Esse é o único e último bem, é a verdade primeira. A não ser por isso não poderia haver atividade -- nenhum motivo para agir -- nenhum objeto de escolha. O prazer é de fato um bem último. É de fato o resultado da existência e da ação. Ele resulta em bem para Deus por sua existência, seus atributos, sua atividade e sua virtude, por uma lei de necessidade. Seus poderes são tão correlatas que só a bem-aventurança pode ser o estado de sua mente, como resultado do exercício de seus atributos e a correta atividade de sua vontade. A felicidade ou gozo resulta, no âmbito tanto natural como governamental, da obediência a ambos, físico e moral. Ela também mostra que o governo não é um fim, mas um meio. Ela também mostra que o fim é a bem-aventurança e o meio, a obediência à lei.

O bem último e absoluto, no sentido de intrinsecamente valioso, não pode ser idêntico à lei moral. A lei moral, conforme vimos, é uma idéia da razão. A lei moral e o governo moral devem propor algum fim a ser garantido por meio da lei. A lei não pode ser o fim dela mesma. Ela não pode requerer que o objeto busque a si mesmo como um fim último. Isso seria absurdo. A lei moral é nada mais que a idéia da razão ou concepção daquele curso de desejo e atuação adequado, apropriado, conveniente para a natureza, relações, necessidades e circunstâncias dos agentes morais e exigido por elas. Percebidas sua natureza, relações, circunstâncias e necessidades, a razão necessariamente afirma que elas devem propor para si mesmas um certo fim e consagrar-se à promoção desse fim, por si, pelo seu valor intrínseco. Esse fim não pode ser a lei em si. A lei é uma simples e pura idéia da razão, jamais podendo ser em si o bem supremo, absoluto e último.

A obediência ou o curso de ação ou desejo requerido pela lei também não pode ser o fim último almejado pela lei ou legislador. A lei requer ação em referência a um fim, ou que um fim seja desejado; mas o desejo e o fim a ser desejados não podem ser idênticos. A ação requerida e o fim a que devem ser dirigidos não podem ser os mesmos. A obediência a lei não pode ser o fim último proposto pela lei ou governo. Obediência é uma coisa, o fim a ser garantido é e deve ser outra. A obediência deve ser um meio ou condição; e aquilo que a lei e a obediência intentam garantir é e deve ser o fim último da obediência. A lei ou legislador almejam promover o máximo bem ou bem-aventurança do universo. Isso deve ser o fim da lei moral ou governo moral. A lei e a obediência devem ser os meios ou condições desse fim. Negar isso é negar a própria natureza da lei moral e perder de vista o verdadeiro e único fim do governo moral. Nada pode ser lei moral e nada pode ser governo moral, se não propuser o máximo bem dos seres morais como seu fim último. Mas se esse é o fim da lei e o fim do governo, deve ser o fim a ser almejado ou intentado pelo legislador e pelo indivíduo. E esse fim deve ser o fundamento da obrigação moral. O fim deve ser bom ou valioso per se, ou não pode haver uma lei moral que exija que o fim seja buscado ou escolhido como um fim último nem alguma obrigação de escolhê-lo como um fim último.

Mas o que se entende quando se diz que o direito, o justo, o verdadeiro, etc, são bens e fins últimos que devem ser escolhidos por si? Eles podem ser objetivos ou subjetivos. O direito, a verdade, a justiça, etc. objetivos são meras idéias e não podem ser bons ou valiosos em si. O direito, o verdadeiro, o justo, etc. subjetivos são sinônimos de retidão, veracidade, justiça. São virtudes. Consistem num estado ativo da vontade e resumem-se em escolha, intenção. Mas vimos repetidas vezes que a intenção não pode ser nem um fim nem um bem em si, no sentido de possuir valor intrínseco.

De novo, constituídos como são os agentes morais, é questão de consciência que a realização concreta das idéias de direito, verdade e justiça, de beleza, de adequação, de ordem moral e, em suma, de toda essa classe de idéias, é indispensável com a condição e o meio do máximo bem-estar deles, e que o gozo ou satisfação mental seja o resultado da realização concreta dessas idéias. Esse gozo ou satisfação, portanto, é e deve ser o fim ou máximo em que deve terminar a intenção de Deus e em que a nossa deve terminar como um fim ou último.

De novo, o gozo resultante para Deus pela realização concreta das próprias idéias dele deve ser infinito. Ele deve, por conseguinte, tê-lo intentado como o bem supremo. Esse é de fato o bem último. E de fato o valor supremo.

De novo, se há mais de um valor último, a mente deve considerá-los, todos juntos, um único valor ou às vezes consagrar-se a um e outras vezes, a outro -- às vezes totalmente consagrada ao belo, às vezes ao justo, e então ao direito, então ao útil, ao verdadeiro, etc. Mas pode-se perguntar: qual o valor do belo à parte do gozo que proporciona aos seres sensíveis? O belo preenche uma exigência de nosso ser e assim permite satisfação. A não ser por isso, em que sentido poderia ser considerado um bem? A idéia do útil, de novo, não pode ser uma idéia de um fim último, pois a utilidade implica que algo é valioso em si, mantendo com a utilidade a relação de meio, sendo útil só por esse motivo.

De que valem a verdade, o direito, o justo, etc. à parte do prazer ou da satisfação mental deles resultantes para existências sensíveis? De que vale todo o restante do universo, não houvesse existências sensíveis para desfrutar dele?

Suponham, de novo, que tudo o mais no universo existisse exatamente como é, exceto a satisfação mental ou o prazer, e que não houvesse em absoluto algum prazer de qualquer tipo em coisa alguma, assim como não existe num bloco de granito: qual seria o valor de tudo? E para que ou para quem seria valioso? A mente, sem susceptibilidade ao prazer, não pode conhecer o bem ou o mal, nem ser mais sujeita a eles do que é uma prancha de mármore. A verdade nesse caso já não poderia ser um bem para a mente, assim como a mente não o seria para a verdade; a luz já não seria um bem para o olho, assim como o olho não o seria para a luz. Nada no universo poderia proporcionar ou receber um mínimo de satisfação ou insatisfação. Nem a adequação nem a inadequação natural ou moral poderiam provocar a mínima emoção ou satisfação mental. Um bloco de mármore poderia ser sujeito ao bem, exatamente como qualquer outra coisa, nessa suposição.

De novo, é óbvio que toda a criação, onde a lei é obedecida, tende para um fim e esse fim é a felicidade ou gozo. Isso demonstra que o gozo era o fim almejado por Deus na criação.

De novo, é evidente que Deus está empenhando-se para realizar todas as outras idéias de sua razão a bem da realização ou como meio para a realização do que seja valioso para o ser. Isso, para dizer a verdade, é o resultado da concretização de todas essas idéias. Esse deve, portanto, ter sido o fim intentado.

Não faz sentido objetar que, se o gozo ou a satisfação mental for a única base da obrigação moral, devemos ser indiferentes aos meios. Essa objeção pressupõe que ao buscar um fim pelo seu valor intrínseco, devemos ser indiferentes à maneira pela qual obtemos tal fim; ou seja, se é obtido de modo possível ou impossível, correto ou incorreto. Ela despreza o fato de que pelas leis de nossa existência, é impossível para nós desejar o fim sem desejar também os meios indispensáveis e, portanto, apropriados, e também que não conseguimos considerar possível alguma outra condição ou meio de felicidade dos agentes morais, e assim, apropriado ou correto, senão a santidade e a conformidade universal com a lei de nossa existência. O gozo ou satisfação mental resulta da satisfação das diferentes demandas de nossa existência. Uma demanda da razão e da consciência de um agente moral é que a felicidade deve ser condicionada pela santidade. É, portanto, impossível um agente moral satisfazer-se com a felicidade ou o gozo dos agentes morais, exceto sob condição de que sejam santos.

Mas essa classe de filósofos insiste que necessariamente consideramos bons em si todos os arquétipos das idéias da razão. Vejo uma rosa. A percepção desse arquétipo da idéia de beleza dá-me prazer instantâneo. Ora, dizem que esse arquétipo é por mim necessariamente considerado bom. Tenho prazer em sua presença e percepção, e sempre que me lembro dela. Esse prazer, dizem, demonstra que é um bem para mim; e esse bem é a própria natureza do objeto e deve ser considerado um bem em si. A isso respondo que a presença da rosa é um bem para mim, mas não um bem último. E só um meio ou fonte de felicidade para mim. A rosa não é um bem em si. Se não houvesse olhos para vê-la, olfato para cheirá-la, para quem seria um bem? Mas em que sentido pode ser um bem, exceto no sentido de que dá satisfação para o observador? A satisfação, e não a rosa, é e deve ser o bem último. Mas pergunta-se: não desejo a rosa pela rosa? respondo: Sim, você a deseja por ela mesma, mas não a escolhe, não a pode escolher, por ela mesma, mas para gratificação do desejo. Todos os desejos terminam em seus respectivos objetos. O desejo de comer termina na comida; a sede termina na bebida, etc. Essas coisas são tão ligadas aos seus apetites, que são desejadas por si. Mas elas não são escolhidas nem podem ser escolhidas por si ou como um fim último. A razão, portanto, urge e demanda que devam ser escolhidos como meios de bem para mim. Quando assim escolhidos em obediência à lei da inteligência e não se dá mais ênfase à gratificação que a proporcional ao seu valor relativo, e quando não se dá ênfase a ele simplesmente porque é minha gratificação, a escolha é santa. A percepção dos arquétipos das várias idéias da razão, na maior parte dos casos, produzirá gozo. Esses arquétipos ou a realização concreta dessas idéias, o que dá no mesmo, são considerados bons pela mente, mas não bens últimos. O bem último é a satisfação derivada da percepção que se tem deles.

A percepção da beleza moral ou física me dá satisfação. Ora, a beleza moral e física são consideradas boas por mim, mas não bens últimos. São só bens relativos. Não fosse pelo prazer que me dão, não poderia de maneira alguma ligá-las com alguma idéia de bem. O olho mental pode perceber a ordem, a beleza física ou moral e tudo o mais, mas, para o intelecto que os percebesse, isso não seria melhor que o oposto deles. A idéia de bem ou valor não poderiam existir em tal caso, por conseguinte não poderia existir a virtude ou a beleza moral. A idéia do bem ou do valor deve existir antes que possa existir a virtude. Ela é e deve ser o desenvolvimento da idéia do valor, que desenvolve a idéia de obrigação moral, de certo e errado, e, por conseguinte, torna possível a virtude. A mente deve perceber um objeto de escolha que seja considerado intrinsecamente valioso antes de poder ter a idéia da obrigação moral de escolhê-lo como um fim. Esse objeto de escolha não pode ser a virtude ou a beleza moral, pois isso seria ter a idéia da virtude ou da beleza moral antes da idéia de obrigação moral ou de certo e errado. Isso seria uma contradição. A mente deve ter a idéia de algum bem último, cuja escolha seja uma virtude, ou a respeito da qual a razão afirme obrigação moral, antes que possa existir a idéia de virtude ou de certo ou errado. O desenvolvimento da idéia do valor ou de um bem último deve preceder a possibilidade da virtude ou a idéia de virtude, de obrigação moral ou de certo e errado. É absurdo dizer que a virtude é considerada um bem último, quando na realidade a própria idéia de virtude não existe nem pode existir até que se apresente um bem, em vista do que a mente afirme a obrigação moral de desejá-la por si, afirmando assim que sua escolha por esse motivo seria virtude.

Assim, a virtude ou santidade é beleza moral. A dignidade ou excelência moral é moralmente bela. A beleza é um atributo ou elemento da santidade, virtude e da dignidade moral ou caráter correto. Mas a beleza não é idêntica à santidade ou à dignidade moral, assim como a beleza de uma rosa não é idêntica à rosa. A rosa é bela. A beleza é um de seus atributos. Assim também a virtude é moralmente bela. A beleza é um de seus atributos. Mas em nenhum dos casos a beleza é um estado mental e, portanto, não pode ser um bem último.

Podemos dizer que a dignidade moral é um bem último; mas é apenas um bem relativo. Ela supre uma exigência de nosso ser, e assim produz satisfação. Essa satisfação é o bem último do ser. No momento que a consideramos um bem em si, isso só ocorre porque experimentamos grande satisfação em contemplá-la. No momento em que erroneamente dizemos que a consideramos um bem em si, de todo independente de seus resultados; só o fazemos, na melhor das hipóteses, porque estamos muito gratos na ocasião, pensando nela. Os resultados experimentados é que são a base da afirmação.

 

Assim vemos:

1. Que a utilidade da escolha última não pode ser um fundamento da obrigação de escolher, pois isso seria transferir, daquilo que é intrínseco ao objeto escolhido para a tendência utilitária da escolha em si, a base da obrigação. Conforme eu disse, a utilidade é uma condição da obrigação de desenvolver um ato executivo, mas jamais pode ser um fundamento da obrigação; pois a utilidade da escolha não é uma razão encontrada exclusivamente no objeto de escolha, se for nela encontrada.

2. O caráter moral da escolha não pode ser um fundamento da obrigação de escolher, pois essa razão não é intrínseca ao objeto de escolha. Afirmar que o caráter da escolha é a base da obrigação de escolher é transferir, do objeto escolhido para o caráter da escolha em si, a base da obrigação de escolher; mas isso é uma contradição de premissas.

3. A relação de um ser com outro não pode ser a base da obrigação de um desejar o bem do outro, pois a base da obrigação de desejar o bem um do outro deve ser a natureza intrínseca do bem, não as relações entre um ser e outro. As relações podem ser condições da obrigação de se procurar promover o bem de indivíduos em particular; mas em todos os casos, a natureza do bem é a base da obrigação.

4. Nem a relação de utilidade, nem a de adequação moral ou direito, conforme existentes entre a escolha e seu objeto, podem ser uma base da obrigação, pois ambas as relações dependem, para a própria existência delas, da importância intrínseca do objeto de escolha; além disso, nenhuma dessas relações é intrínseca ao objeto de escolha, como deve, para ser uma base de obrigação.

5. A importância ou valor relativo de um objeto de escolha jamais pode ser uma base da obrigação de escolher tal objeto, pois sua importância relativa não é intrínseca ao objeto. Mas a importância relativa de um objeto pode ser uma condição da obrigação de escolhê-lo como condição para garantir um objeto intrinsecamente valioso com que mantenha a relação de meio.

6. A idéia de dever não pode ser uma base de obrigação; essa idéia é uma condição, mas jamais um fundamento da obrigação, pois essa idéia não é intrínseca ao objeto que afirmamos ser nosso dever escolher.

7. A percepção de certas relações existentes entre indivíduos não pode ser uma base; embora seja uma condição da obrigação de cumprir para com eles certos deveres. Nem a relação em si nem a percepção da relação são intrínsecas àquilo que afirmamos ter obrigação de desejar ou fazer para eles; obviamente, nem um nem outro podem ser uma base da obrigação.

8. A afirmação da obrigação pela razão não pode ser uma base, embora seja uma condição da obrigação. A obrigação é afirmada com base na importância intrínseca do objeto, e não em vista da afirmação em si.

9. A vontade soberana de Deus jamais é o fundamento, embora com freqüência seja uma condição de certas formas de obrigação. Se conhecêssemos o valor intrínseco ou relativo de um objeto, teríamos a obrigação de escolhê-lo, quer fosse isso requerido quer não, por Deus.

A vontade revelada de Deus é sempre uma condição da obrigação, sempre que tal revelação seja indispensável para nosso entendimento da importância intrínseca ou relativa de algum objeto de escolha. A vontade de Deus não é intrínseca ao objeto que Ele nos ordena desejar e, obviamente, não pode ser uma base da obrigação.

10. A excelência moral de um ser jamais pode ser um fundamento da obrigação de desejar seu bem; pois seu caráter não é intrínseco ao bem que devemos desejar para ele. O valor intrínseco daquele bem deve ser a base da obrigação, e seu bom caráter só uma condição da obrigação de desejar seu gozo do bem em particular.

O bom caráter jamais pode ser uma base da obrigação de escolher algo que não ele próprio; pois as razões da escolha última devem ser encontradas exclusivamente no objeto de escolha. Assim, se o caráter é uma base da obrigação de desenvolver uma escolha última, deve ser o objeto de tal escolha.

11.0 direito jamais pode ser uma base da obrigação, a menos que o direito em si seja o objeto que temos a obrigação de escolher por si.

12. A susceptibilidade ao bem jamais poder ser uma base, embora seja uma condição da obrigação de desejar o bem para um ser. A susceptibilidade não é intrínseca ao bem que devemos desejar e, portanto, não pode ser uma base da obrigação.

13. Nenhum elemento pode ser a base da obrigação de escolher algum outro elemento; pois os motivos para a escolha de algo, com fim último, devem ser encontrados nele mesmo, não em algo estranho a ele.

14. Pela admissão do fato de que nada, senão a escolha ou intenção última é certa ou errada per se, e que todas as volições executivas, ou atos, derivam seu caráter da intenção última a que devem a existência, segue-se:

(a) Que se as volições executivas são desenvolvidas com a intenção de garantir um fim intrinsecamente valioso, são corretas; se não, são erradas.

(b) Também se segue que a obrigação de desenvolver atos executivos é condicionada, não fundamentada, pela suposta utilidade de tais atos. De novo:

(c) Também se segue que todos os atos externos são certos ou errados conforme provêem de uma intenção correta ou errada.

(d) Também se segue que a justiça de qualquer volição executiva ou ato externo depende da utilidade suposta e intentada daquela volição ou ato. A utilidade delas deve ser pressuposta como uma condição da obrigação de desenvolvê-las e, é claro, sua utilidade intentada é uma condição para estarem corretas.

(e) Também se segue que, sempre que decidimos ser nosso dever desenvolver algum ato externo, qualquer que seja, independentemente de sua suposta utilidade, por pensarmos ser correto, nos enganamos; pois é impossível que atos externos ou volições que, pela natureza são sempre executivos, possam ser obrigatórios ou corretos, independentemente de sua suposta utilidade ou tendência de promover um fim intrinsecamente valioso.

(f) Segue-se também que é erro crasso afirmar a retidão de um ato executivo como uma razão para desenvolvê-lo, mesmo supondo que sua tendência seja para o mal e não para o bem. Com essa suposição não há possibilidade de algum ato executivo estar correto. Quando Deus requer certos atos executivos, sabemos que eles tendem a garantir o máximo bem e que, se desenvolvidos para garantir tal bem, são corretos. Mas em caso algum em que Deus não tenha revelado o caminho do dever no que diz respeito a atos executivos ou cursos de vida, devemos decidir tais questões em vista de sua retidão, independentemente da boa tendência de tais atos ou cursos de vida; pois a retidão deles depende de sua suposta boa tendência.

Mas dizem que um agente moral pode às vezes ter a obrigação de desejar o mal em lugar do bem para os outros.

Resposta: Jamais pode ser dever de um agente moral desejar para algum ser o mal pelo mal ou o mal como um fim último. O caráter e as relações governamentais de um ser podem ser tais que possa ser seu dever desejar sua punição para promover o bem público. Mas nesse caso o bem é o fim desejado e a desgraça, só o meio. Assim, pode ser o dever de um agente moral desejar a desgraça temporária até de um ser santo para que se promovam os interesses públicos. Tal foi o caso dos sofrimentos de Cristo. O Pai desejou sua desgraça temporária para promover o bem público. Mas em todos os casos quando é dever desejar a desgraça é só como um meio ou condição para o bem público ou individual, e não como um fim último.

 

1. Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Fundamento da Obrigação Moral.

2. Veja Glossário.

3. Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Fundamento da Obrigação Moral.

4. Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Fundamento da Obrigação Moral.

 

 

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