A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 36

A PERSEVERANÇA DOS SANTOS

 

Objeções respondidas.

1. Dizem que a tendência natural da doutrina da perseverança a condena, que tende a gerar e alimentar uma presunção carnal numa vida de pecado por parte daqueles que se consideram santos. Há, respondo, distinção ampla e óbvia entre o abuso de uma coisa ou de boas doutrinas e a sua tendência natural. A tendência legítima de uma coisa ou doutrina pode ser boa e, mesmo assim, ainda haver abuso e ser pervertida. Isto é verdade no que diz respeito à expiação e oferta de perdão por Cristo. Estas doutrinas foram -- e são -- grandemente objetadas pelos universalis-tas e unitários, dizendo que têm a tendência de estimular a esperança da impunidade do pecado. Eles afirmam que defender a idéia de que Cristo fez expiação pelo pecado e que os pecadores mais inveterados e mais vis podem ser perdoados e salvos tende diretamente à imoralidade e ao estímulo da esperança de impunidade última numa vida de pecado -- a esperança de que, depois de uma vida pecaminosa, o pecador pode no fim arrepender-se e ser salvo.

Há tanta plausibilidade nessa objeção à doutrina do perdão e à doutrina da expiação que muitos indivíduos sensatos, em função disso, rejeitaram-nas. Eles consideraram a objeção incontestável. Mas um exame detido mostrará que a objeção contra essas doutrinas é completamente sem fundamento; não só isso, mas que a real tendência natural dessas doutrinas presume um forte argumento em favor delas. Descrever a um pecador sob convicção e condenação de si mesmo que Cristo morreu por seus pecados e oferece livre e imediatamente perdão de todo o passado, não tem a tendência natural de gerar um espírito de perseverança na rebelião, mas, pelo contrário, é o método mais apto e mais seguro -- e posso acrescentar -- o único eficaz de subjugá-lo e levá-lo ao arrependimento imediato. Mas suponha, por outro lado, que você diga ao pecador que não há perdão, que ele deve ser castigado por seus pecados em todos as circunstâncias, que tendência tal declaração tem de levá-lo ao arrependimento imediato e genuíno, de gerar nele o amor exigido pela lei de Deus? Assegurá-lo do castigo por todos os seus pecados pode servir para conter as manifestações externas de um coração pecador, mas certamente não tende a subjugar o egoísmo e a limpar o coração, ao passo que a oferta de misericórdia pela morte de Cristo tem forte tendência de subjugar o pecado. É tamanha manifestação do grande amor de Deus, da verdadeira misericórdia divina e da prontidão do Pai em destruir e esquecer o passado que o pecador tende a desarmar o coração teimoso num arrependimento genuíno e gerar o mais sincero amor a Deus e a Cristo, juntamente com a mais profunda aversão e humilhação de si mesmo por causa do pecado. Assim, as doutrinas da expiação e do perdão por meio de um Redentor crucificado, em vez de serem condenadas por sua tendência legítima, são desse modo grandemente confirmadas. Estas doutrinas estão, sem dúvida, sujeitas a abuso e assim acontece com todas as boas coisas, mas esta é uma boa razão para rejeitá-las? Podemos abusar da comida e da bebida, necessárias à nossa sobrevivência, e freqüentemente o fazemos, até mesmo em relação a outras bênçãos essenciais à vida. Mas devemos rejeitá-las por conta disso?

Admite-se que as doutrinas da expiação e do perdão por Cristo sofrem grandes abusos dos pecadores negligentes e dos hipócritas, mas esta é uma boa razão para negá-las e retê-las do pecador convicto que com avidez está buscando o que fazer para ser salvo? Quem faria isso?

Admite-se, também, que a doutrina da perseverança dos santos está sujeita a abuso, sendo freqüentemente pervertida pelo adepto carnal e equivocado, mas esta é uma boa razão para rejeitá-la e reter suas consolações dos santos tentados e lançados ao tormento? De modo algum. São tais as circunstâncias da tentação interior e exterior às quais os santos enfrentam nesta vida, que, quando se conscientizam delas e são levados a fazer uma avaliação formal das circunstâncias nas quais se encontram, não têm outra base racional de esperança, exceto a que se acha nesta doutrina. A tendência natural e a conseqüência inevitável de uma revelação minuciosa dessas circunstâncias gerariam desespero nos santos, exceto pela convencionada graça e fidelidade de Deus. Qual o santo que alguma vez tenha sido revelado pelo Espírito Santo e não tenha visto o mesmo que Paulo, quando este afirmou: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum" (Romanos 7.18)? Que pessoa conhecedora de si mesmo não sabe que nunca deu e jamais dará um passo em direção ao céu, exceto à medida que for arrastada e atraída pela graça de Deus em Cristo Jesus? Quem que se conhece não sabe que nunca se teria convertido, exceto pela graça de Deus precipitando e estimulando as primeiras noções de sua mente na direção certa? E que santo verdadeiro não sabe como eram seus hábitos anteriores, como são as circunstâncias de tentação sob as quais atualmente se encontra, e como a sua alma, embora convertida, sofre tendência descendente de tal maneira que não perseverará por uma hora, a não ser que a graça permanente e o Espírito de Deus os sustente e os incite no caminho da santidade?

Perguntaria: onde se encontra a base de esperança para os santos, enquanto estão neste mundo? Não no fato de que foram regenerados no sentido físico, de modo que cair lhes seja naturalmente impossível. Não no fato de que passaram por tamanha mudança de natureza de modo a assegurar sua perseverança por uma hora, se deixados sozinhos. Não no fato de que podem ou vão se sustentar por um dia ou um momento mediante resoluções próprias. Onde está a esperança deles? Não há nem mesmo uma base de probabilidade para que, pelo menos, um dentre os santos algum dia venha a ser salvo, a menos que a doutrina em questão seja verdadeira, isto é, a menos que a prometida graça e fidelidade de Deus em Cristo Jesus estejam adiante e a cada passo afiancem a perseverança dos santos. Mas se esta graça é prometida a um santo como a única base de confiança que dispõe ou mesmo a esperança de que seja salvo, é prometida igualmente e nas mesmas condições a todos os santos. Ninguém mais do que qualquer outro pode colocar a menor dependência que seja em qualquer coisa, exceto na graça igualmente prometida e outorgada a todos. Quem é o homem que conhece a si mesmo e espera ser salvo, mas ainda assim não depende completamente das promessas da graça em Cristo Jesus?

Como essencial à salvação, a tendência natural da verdadeira e completa convicção de pecado, que produz o conhecimento de nós mesmos, é gerar e alimentar desânimo e desespero; e, como já afirmei, a alma nessas condições tem pouca ou nenhuma base de esperança de salvação última, a não ser o que a doutrina da perseverança dos santos, quando entendida corretamente, dispõe. Contudo, logo que a alma progride no caminho da vida, após conhecer por inteiro a verdade, percebe que não progrediu um passo, exceto quando foi atraída e inclinada pela graça permanente e pelo Espírito de Cristo; e que não avançará mais adiante no caminho para o céu, a menos que a mesma influência da graça continue em tal sentido e em tal extensão no que tange a vencer todas as tentações com que é atacada. Sua única esperança está no fato de que Deus prometeu guardá-la e preservá-la. Nada mais do que a fidelidade de Deus a seu Filho obteve a conversão de qualquer santo. Nada mais do que essa mesma fidelidade fez com que este perseverasse por um dia e nada mais pode dar a salvação a qualquer alma de outro modo. Que pessoa pode estar pensando sobre o assunto, ou mesmo achar que se conheça, e não saiba disto? A menos que a mesma graça garanta a conversão dos santos, garanta sua perseverança até o fim, não há esperança para eles. E verdade que as promessas aos pecadores e aos santos estão condicionadas à fé e ao exercício correto de si mesmos como agentes morais; é também verdade que a graça garante a realização das condições das promessas em todas as instâncias nas quais são cumpridas ou, caso contrário, nunca seriam cumpridas.

Vimos que as promessas do Pai ao Filho asseguram a dotação aos santos de toda a graça para garantir sua salvação final. Choca-me e entristece-me ouvir cristãos professos falarem de ser salvos, exceto com base na graça de Deus em Cristo Jesus -- graça que antecipa a vitória, torna o crente perseverante e vence o pecado e o inferno. Por que eu esperaria que o diabo fosse salvo, como o será o santo na terra, se deixado com todas as promessas de Deus nas mãos para permanecer e perseverar, sem os apelos, os ensinos interiores e as influências persuasivas do Espírito Santo? Que vergonha para uma teologia que suspende a salvação última dos santos sob a cana quebrada de suas resoluções em seu melhor estado! As resoluções mais firmes nada representam, a menos que sejam formadas e estejam apoiadas pela influência do Espírito da graça que vai adiante, estimulando e persuadindo a conformação dos santos a Cristo e sua permanência na fé. Isto é ensinado em todas as partes da Bíblia. Afinal, é de esperar-se que quem já considerou o assunto saiba que esta é a experiência de todo santo. Onde está a base de esperança, se a doutrina em questão for negada? "Se o fundamento for destruído, o que fará o justo?" Onde está a má tendência desta doutrina? Naturalmente não há má tendência. A certeza da eterna salvação pelo sangue, amor e graça de Cristo pode ter a tendência natural de endurecer o coração de um filho de Deus contra seu Pai e seu Salvador? O fato revelado de que ele será mais do que vencedor por Cristo lhe pode gerar a disposição de pecar contra Cristo? Impossível! Esta doutrina, embora sujeita a abusos pelos hipócritas, é não obstante a âncora mestra dos santos nos momentos de conflito. E os filhos serão privados do pão da vida porque os pecadores perverterão seu uso para sua própria destruição? Esta doutrina é absolutamente necessária para evitar o desespero, quando a convicção é profunda e os conflitos com a tentação são acirrados. A tendência natural deste ensino é deter e controlar o egoísmo a fim de evitar os esforços e resoluções egoístas e sustentar a confiança da alma no Senhor em todos os momentos. Tende a subjugar o pecado, a humilhar a alma com um senso do amor e fidelidade de Deus em Cristo Jesus, a influenciá-la para viver Cristo e renunciar inteiramente e para sempre toda a confiança na carne. Com efeito, essa tendência é o oposto direto do que é afirmado na objeção. É contra o abuso, e não contra a tendência natural desta doutrina, que tal objeção é levantada. Mas o abuso de uma doutrina não é razão para ser rejeitada.

2. Mas dizem que os santos verdadeiros às vezes caem pelo menos em apostasia temporária, e em tais casos a convicção da doutrina da perseverança tende a acalmá-los na segurança carnal e a prolongar sua apostasia, se não a incentivá-los a apostatar-se.

A isto respondo que se os cristãos verdadeiros de fato apostatam, perdem temporariamente a evidência da aceitação a Deus; ademais sabem que nesse estado não podem ser salvos. Esta objeção é antes dirigida contra aquela opinião da perseverança que diz "uma vez na graça, sempre na graça", que ensina a doutrina da justificação perpétua sob a condição de um ato de fé. A doutrina segundo tem sido ensinada nestas aulas não oferece nenhuma base de esperança ao apóstata, exceto sob a condição de retorno e perseverança até o fim. Além disso, a doutrina, como aqui ensinada, diz que a perseverança na santidade, como algo subseqüente à santidade da regeneração, é pelo menos a regra, sendo o pecado a única exceção e, como tal, é um atributo do caráter cristão. Todo momento em que o apóstata permanece em pecado tem de ter menos evidência de que é filho de Deus.

Mas, como afirmei, o apóstata perde a confiança em seu próprio cristianismo e nesse estado de apostasia não crê na doutrina da perseverança como doutrina da revelação. É absurdo dizer que enquanto apóstata de Deus ele ainda tem fé em sua Palavra e crê nesta doutrina como doutrina cristã e na força do testemunho de Deus. Nesse estado, o apóstata realmente não crê na doutrina e, portanto, não é a tendência da doutrina quando crida que o prejudica, mas seu crasso abuso e perversão. Mas a perversão de uma doutrina não é objeção a ela. A real tendência da doutrina é quebrantar o coração do apóstata para lhe mostrar o grande amor, a fidelidade e a graça de Deus que tende naturalmente a subjugar o egoísmo e humilhar o coração. Quando os apóstatas são incentivados por esta doutrina e tornam-se presunçosos, isto nada mais é do que uma gritante perversão e um abuso dela.

Aqueles que persistem em tais objeções deveriam refletir em sua inconsistência ao tornarem a óbvia perversão e o abuso desta doutrina uma objeção a ela, quando defendem outras doutrinas igualmente sujeitas a abuso e igualmente pervertidas, apesar disso. Que tais pessoas vejam que estão praticamente adotando um princípio e insistindo em sua aplicação neste caso, o que, se levado adiante, poria de lado o Evangelho inteiro.

3. Objeta-se que a Bíblia fala dos santos como se houvesse perigo real de perdição para eles. Questiona-se que gastam o tempo de sua permanência temporária aqui temerosos, cheios de precauções, advertências e ameaças que, certamente, estão fora de lugar e não devem de jeito nenhum ser consideradas, se a salvação dos santos é uma certeza revelada. Como, perguntam, podemos ter medo, se Deus revelou a certeza de nossa salvação? O medo em tal caso não é resultado da incredulidade? Deus pode nos revelar o fato de que com certeza seremos salvos e depois exigir ou exortar que tenhamos medo de não sermos salvos? Ele pode exigir que duvidemos de sua palavra e de seu juramento? Se Deus revelou a certeza de salvação de todos os santos verdadeiros, pode algum santo temer que não será salvo sem inequívoca incredulidade? E Deus pode aprovar e até ordenar tal temor? Se a pessoa está consciente de possuir o caráter designado aos verdadeiros santos da Bíblia, ela não está presa à pressuposição de que esta doutrina é verdadeira, tendo e nutrindo, por isso mesmo, a certeza mais determinada de que será salva? Ela tem algum direito de duvidar ou ter medo de que não será salva?

Respondo que nenhum santo verdadeiro que tenha evidência ou anelo de sua aceitação a Deus, como desfruta o verdadeiro santo, tem o direito de duvidar por um momento sequer que será salvo, nem de ter medo de que não será salvo. Acrescento, também, que a Bíblia em parte alguma encoraja ou exige que os santos temam que não serão salvos ou que irão para a perdição. Ela requer que tenham medo de outra coisa -- do pecado ou da apostasia para que não se percam -- mas não que pecarão e irão para a perdição. As passagens a seguir são exemplos das exortações e advertências dadas aos santos:

"Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mt 26.41).

"Olhai, vigiai e orai, porque não sabeis quando chegará o tempo. É como se um homem, partindo para fora da terra, deixasse a sua casa, e desse autoridade aos seus servos, e a cada um, a sua obra, e mandasse ao porteiro que vigiasse. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o senhor da casa; se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que, vindo de improviso, não vos ache dormindo. E as coisas que vos digo digo-as a todos: Vigiai" (Mc 13.33-37).

"Bem-aventurados aqueles servos, os quais, quando o Senhor vier, achar vigiando! Em verdade vos digo que se cingirá, e os fará assentar à mesa, e, chegando-se, os servirá" (Lc 12.37).

"Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia" (1 Co 10.12).

"Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos varonilmente e fortalecei-vos" (1 Co 16.13).

"Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como sábios, remindo o tempo, porquanto os dias são maus" (Ef 5.15,16).

"No demais, irmãos meus, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo" (Ef 6.10,11).

"Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo, para que, quer vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça acerca de vós que estais num mesmo espírito, combatendo juntamente com o mesmo ânimo pela fé do evangelho. E em nada vos espanteis dos que resistem, o que para eles, na verdade, é indício de perdição, mas, para vós, de salvação, e isto de Deus" (Fp 1.27,28).

"Não durmamos, pois, como os demais, mas vigiemos e sejamos sóbrios" (1 Ts 5.6).

"Milita a boa milícia da fé, toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado, tendo já feito boa confissão diante de muitas testemunhas" (1 Tm 6.12).

"Mas tu sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério" (2 Tm 4.5).

"E já está próximo o fim de todas as coisas; portanto, sede sóbrios e vigiai em oração" (1 Pe 4.7).

"E odiados de todos sereis por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até ao fim será salvo" (Mt 10.22).

"O qual [Deus] recompensará cada um segundo as suas obras, a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram glória, e honra, e incorrupção" (Rm 2.6,7).

"Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado" (1 Co 9.27).

"E nós, cooperando também com ele, vos exortamos a que não recebais a graça de Deus em vão" (2 Co 6.1).

"Se, na verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança do evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro" (Cl 1.23).

"Mas Cristo, como Filho, sobre a sua própria casa; a qual casa somos nós, se tão-somente conservarmos firme a confiança e a glória da esperança até ao fim. Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo. Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado. Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim" (Hb 3.6,12-14).

"Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para trás. Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência" (Hb 4.1,11).

"Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e tereis uma tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida. Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas: O que vencer não receberá o dano da segunda morte. Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao que vencer darei eu a comer do maná escondido e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe. E ao que vencer e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações" (Ap 2.10,11,17,16).

"Quem vencer herdará todas as coisas, e eu serei seu Deus, e ele será meu filho" (Ap 21.7).

"E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai em temor, durante o tempo da vossa peregrinação" (1 Pe 1.17).

Em nenhum lugar da Bíblia encontrei passagem ordenando ou exortando que os santos tenham medo de ir para a perdição, mas, pelo contrário, esse tipo de medo é desencorajado e reprovado em todas as páginas da Palavra de Deus. Os santos são exortados à garantia extrema de que Cristo os guardará e os preservará até o fim e, finalmente, lhes dará a vida eterna. Eles são advertidos contra o pecado e a apostasia, sendo informados de que se caírem na apostasia irão para a perdição. Eles são expressamente advertidos de que a salvação é condicionada à perseverança na santidade até o fim. Eles também são exortados a vigiar contra o pecado e a apostasia, a temer ambos, para que não percam a salvação.

"Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para trás" (Hb 4.1).

"Pelo que, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até a perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno. E isso faremos, se Deus o permitir. Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se fizeram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro, e recaíram sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificam o Filho de Deus e o expõem ao vitupério" (Hb 6.1-6).

"Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo. Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado. Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim" (Hb 3.12-14).

Requer-se que os santos tenham medo de pecar, mas não que tenham medo de que pecarão, no sentido de implicar alguma expectativa de pecado. Devem temer a apostasia, mas não esperar ou temer que apostatarão. Devem ter medo da perdição, mas não esperar que se perderão. Ter medo do pecado para que não pereçamos é coisa muito diferente do que ter medo de que pecaremos e iremos para a perdição. Há tanta necessidade de temermos o pecado e a perdição quanto teria se não houvesse certeza de nossa salvação. Quando consideramos a natureza da certeza de salvação dos santos, que é apenas uma certeza moral e condicional, podemos ver a propriedade e necessidade das advertências e ameaças que encontramos dirigidas a eles na Bíblia. A linguagem da Bíblia descreve a certeza da salvação dos santos justamente como se espera que seja: uma certeza moral e condicional.

A objeção que estamos considerando está baseada na pressuposição de que as advertências e as exortações para temer são incoerentes com a certeza revelada da salvação dos santos. Mas a Bíblia não fornece instâncias abundantes de advertência em casos em que o resultado é revelado como certo? O caso do naufrágio de Paulo está em questão. Este caso foi aludido uma vez, mas recorro a ele periodicamente por causa da ilustração neste ponto. Deus, por Paulo, revelou o fato de que nenhuma vida a bordo do navio se perderia. Ele fez esta declaração como fato, sem qualquer qualificação ou condição revelada. Mas quando os marinheiros que sabiam como pilotar o navio estavam a ponto de abandoná-lo, Paulo os informa que a permanência deles era a condição da salvação da morte. Os meios eram tão certos quanto o fim, ainda que o fim estivesse condicionado pelos meios, e se os meios falhassem, o fim falharia. Paulo apelou para o medo que tinham da morte para fazer com que não negligenciassem os meios da segurança. Ele não tinha a intenção de estimular nos passageiros uma desconfiança da promessa de Deus, mas apenas notificá-los da natureza condicional da certeza da segurança que lhe havia sido revelada e, assim, levá-los a imediatamente temer negligenciar os meios e confiar na certeza da segurança de modo a fazer uso diligente dos meios. Mas este é um caso -- fique bem entendido -- que vai diretamente ao ponto e por si só oferece resposta cabal à objeção sob consideração. É um caso em que a certeza revelada do evento estava plenamente coerente com a advertência e a ameaça. Ainda mais, é um caso em que a certeza, embora real, era dependente da advertência e ameaça, do conseqüente medo de negligenciar os meios. Este caso é ilustração plena da certeza revelada da salvação última dos santos. Não houvesse outro caso na Bíblia em que a advertência e a ameaça são dirigidas àqueles cuja segurança é revelada, este seria resposta cabal para a afirmação de que advertências e ameaças são incoerentes com a certeza revelada. Paulo teve medo que os meios da segurança fossem negligenciados, mas não temeu que fossem realmente negligenciados, porque sabia que não seriam.

Para a pertinência deste caso como ilustração, objeta-se que o profeta Jonas por quarenta dias pronunciou como certa a destruição de Nínive, tanto quanto Paulo revelou a certeza da segurança de todos a bordo do navio. Afirma-se que Paulo não pretendeu revelar o resultado como certo, porque quando uma revelação foi feita com respeito à destruição de Nínive, nas mesmas condições não qualificadas, o evento mostrou que não teve o fim previsto. A isto respondo que no caso de Jonas é evidente na narrativa inteira que nem Jonas nem os ninivitas entenderam o evento como algo que seria incondicionalmente realizado. Jonas atribuiu expressamente a Deus seu conhecimento da incerteza do evento como desculpa para não entregar a mensagem. Assim as próprias pessoas entenderam que o evento poderia não ser realizado, como a conduta do povo revela em abundância. A diferença nos dois casos é somente esta: uma pessoa tinha a realidade e a certeza revelada, a outra não. Por que este caso deveria ser citado como a excluir o episódio do naufrágio? Mas dizem que nenhuma condição foi revelada num caso mais do que no outro. Até onde a história registra, nenhuma menção é feita no caso de Nínive que sugira alguma condição mediante a qual a destruição da cidade pudesse ser evitada. Contudo, está claro que Jonas e os ninivitas entenderam que a ameaça era condicional, no sentido de que os eventos poderiam ou não acontecer. O próprio Jonas não o esperava com muita certeza. Mas no caso de Paulo, ele creu expressamente que Deus faria como lhe tinha dito e que não haveria a perda da vida de ninguém, de modo que encorajou os passageiros a crerem na mesma coisa. Paulo entendeu o fim como certo, embora soubesse e logo os informasse que a certeza era moral e condicionada ao uso diligente dos meios. Os dois casos de modo nenhum são paralelos. É verdade que Nínive teria sido destruída, não tivessem os habitantes usado os meios apropriados para evitá-lo; o mesmo é verdade com relação à tripulação do navio. E, também, verdade que, em ambos os casos, os meios não seriam negligenciados. Contudo, em um caso a certeza foi realmente entendida para ser revelada e crida daquela forma, não no outro. O ponto a ser ilustrado pela referência a este caso do naufrágio é somente este: Um homem pode ter medo e pode haver base e necessidade de precaução e temor, onde há uma certeza real revelada, crida ou conhecida? A objeção a que respondo propõe que, se a salvação dos santos é certa e revelada como tal, sendo crida como certa, então não há base para se ter medo e não há necessidade ou lugar de advertência e ameaça.

Mas o naufrágio de Paulo é um caso no qual todas estas coisas se encontram:

(1) Era certo que o evento se realizaria e -- é claro -- as condições deveriam seguramente ser cumpridas.

(2) A certeza foi revelada.

(3) Foi crida.

(4) Contudo, houve advertências, ameaças e medo que os meios fossem negligenciados.

Mas estes elementos não se encontram no caso de Jonas e dos ninivitas. Vejamos:

(1) Não era definitivo que a cidade seria destruída.

(2) A revelação não foi entendida como definitiva.

(3) Não foi crida como definitiva.

Por que, pergunto novamente, estes casos deveriam ser tratados em paralelo?

Paulo fala repetidas vezes da própria salvação como definitiva e, não obstante, de uma maneira que a condiciona à sua perseverança na fé e obediência até o fim. Ele diz:

"Porque sei que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo. E, tendo esta confiança, sei que ficarei e permanecerei com todos vós para proveito vosso e gozo da fé" (Fp 1.19,25).

"E o Senhor me livrará de toda má obra e guardar-me-á para o seu reino celestial; a quem seja glória para todo o sempre. Amém!" (2 Tm 4.18).

Nessas passagens está claro que Paulo considerou sua perseverança e salvação última pela graça de Deus asseguradas. Paulo, em todos os lugares, como todo leitor atento da Bíblia sabe, renuncia toda a esperança, exceto na graça permanente e no Espírito de Cristo. Contudo, sentia-se confiante de sua salvação. Mas se o apóstolo não tivesse confiança em Deus, em que estava alicerçada sua fé? Novamente:

"Por cuja causa padeço também isto, mas não me envergonho, porque eu sei em quem tenho crido e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até àquele Dia" (2 Tm 1.12).

Aqui Paulo expressa outra vez a mais plena confiança de sua salvação. Ele não quis dizer meramente que se houvesse disposição, Cristo era poderoso para guardar o seu depósito, mas presumiu a boa vontade de Jesus e afirmou sua capacidade como base de sua confiança. Conforme determina a razão, não se pode duvidar que, aqui, Paulo não tenha expressado inteira confiança em sua salvação última. Ele não disse ter sido persuadido que Cristo podia salvá-lo se perseverasse, mas que sua confiança estava alicerçada no fato de que Cristo podia garantir sua perseverança. Por ter sido persuadido que Cristo podia guardá-lo, Paulo tinha a garantia e a esperança de salvação. A mesma razão o apóstolo atribuiu como base da confiança de que outros seriam salvos. Aos tessalonicenses, afirma: "Mas fiel é o Senhor, que vos confortará e guardará do maligno" (2 Ts 3.3). Judas declara: "Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória" (Jd 24). Pedro fala de todos os eleitos ou santos: "Que, mediante a fé, estais guardados na virtude de Deus, para a salvação já prestes para se revelar no último tempo" (1 Pe 1.5). Assim vemos que a base da confiança dos apóstolos era que Deus em Cristo podia guardá-los e o faria, não sem seus próprios esforços, mas que Ele os induziria a serem fiéis, garantindo desse modo este resultado. O mesmo era verdade de Cristo, como se manifesta em sua última oração pelos discípulos: "Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou" (Jo 17.15,16). Mas os apóstolos freqüentemente expressam sua confiança na certeza de sua salvação e também na certeza da salvação daqueles a quem escreveram. Paulo afirma: "Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar. Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado" (1 Co 9.26,27). Aqui o apóstolo expressa a plena confiança de que ganhará a coroa, mas ao mesmo tempo reconhece a condição da salvação e nos informa que tomava cuidado para cumpri-la a fim de não ficar reprovado. Ele fala no versículo 26: "Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar". Paulo alude aos Jogos Olímpicos neste contexto e declara: "Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis. E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível, nós, porém, uma incorruptível" (1 Co 9.24,25). Então acrescenta os versículos 26 e 27: "Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar. Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado".

Entre os que corriam nesses jogos, somente um ganharia o prêmio. Mas não é assim na corrida cristã: aqui todos podem ganhar. Nesses jogos, pelo fato de apenas um ter a possibilidade de ganhar, havia muita incerteza a respeito de quem seria o vencedor em particular. Na corrida cristã não há necessidade de tal incerteza. Como falando de si mesmo, Paulo diz: "Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar. Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado" (1 Co 9.26,27). Quer dizer, ele não corria com incerteza ou irresolução, na dúvida se ganharia ou não o prêmio. Nem combatia como quem bate no ar ou como alguém que luta de forma duvidosa ou em vão; mas, enquanto tinha esta confiança, subjugava seu corpo. Nega-se que Paulo nesse trecho pretendesse expressar confiança em sua salvação, mas conforme a razão isto não é possível. Ele falava da corrida cristã e das condições mediante as quais o vencedor ganharia a coroa. Paulo afirma que não havia essa incerteza. Nos Jogos Olímpicos havia incerteza porque só um poderia ganhar, mas aqui não existe base para isso. Ademais, enquanto para o apóstolo não havia absolutamente real incerteza, ao mesmo tempo ele entendia a natureza condicional da certeza e, por isso, subjugava o corpo. Pode alguém realmente supor que Paulo tinha dúvida quanto à sua salvação última? Observe que essas passagens a respeito do apóstolo não são citadas para provar que todos os santos serão salvos, nem que se Paulo estivesse certo de sua salvação todos os santos o podem estar. Prová-lo não é, agora, minha intenção, mas simplesmente mostrar que, enquanto Paulo estava certo e não tinha dúvida de sua salvação última, ele ainda temia negligenciar os meios. Ele não ficou desanimado na corrida cristã com um senso de incerteza, como aqueles que correm nos Jogos Olímpicos. Paulo não estava irresoluto, como normalmente os atletas estariam, por causa da grande incerteza da vitória. Ele esperava ganhar e, contudo, não ousou negligenciar as condições para chegar ao pódio. Ainda mais, esperava ganhar porque tinha a expectativa de cumprir as condições. Ele nutria essa esperança não porque confiava em si, mas porque depositava sua confiança na graça e no Espírito de Deus para garantir sua perseverança. Não obstante, subjugou seu corpo e temeu a auto-indulgência para que não fosse reprovado.

Acerca dos tessalonicenses, Paulo afirma que os considerava eleitos de Deus: "Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus" (1 Ts 1.4). Em ambas as epístolas dirigidas a essa igreja, é freqüente o apóstolo falar daqueles irmãos como se considerasse a sua salvação assegurada, não deixando, contudo, de adverti-los e exortá-los muitas vezes à fidelidade e a se guardarem de ser enganados por falsos mestres. "Ora, irmãos, rogamo-vos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e pela nossa reunião com ele, que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o Dia de Cristo estivesse já perto. Ninguém, de maneira alguma, vos engane, porque não será assim sem que antes venha a apostasia e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição" (2 Ts 2.1-3). Ele lhes endereça a mesma linha de exortação como o faz com todos os cristãos e os admoesta com advertências e avisos, como seria de se esperar, considerando a natureza moral e condicional da certeza da salvação.

Escrevendo aos filipenses, Paulo diz: "Tendo por certo isto mesmo: que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao Dia de Jesus Cristo. Como tenho por justo sentir isto de vós todos, porque vos retenho em meu coração, pois todos vós fostes participantes da minha graça, tanto nas minhas prisões como na minha defesa e confirmação do evangelho" (Fp 1.6,7). Aqui a confiança de um apóstolo inspirado expressa que Cristo asseguraria a salvação daqueles irmãos. Não obstante, acrescenta: "De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" (Fp 2.12,13). Nesta passagem Paulo os adverte a operar a salvação com temor e tremor. Não há passagem mais forte do que esta, onde os santos são exortados a temer, e observe que é endereçada às mesmas pessoas de quem há pouco ele tinha dito: "Tendo por certo isto mesmo: que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao Dia de Jesus Cristo" (Fp 1.6). Quase no mesmo fôlego ele expressa a confiança de um apóstolo inspirado de que aquele que começara a boa obra nos filipenses a aperfeiçoaria até o Dia de Jesus Cristo, ou seja, Ele os salvaria com certeza, enquanto, ao mesmo tempo, os exorta a operar a salvação com temor e tremor. Paulo também se dirige à igreja de Éfeso como segue:

"Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão em Éfeso e fiéis em Cristo Jesus: a vós graça e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo. Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em caridade, e nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado. Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça, que ele tornou abundante para conosco em toda a sabedoria e prudência, descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade, com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que primeiro esperamos em Cristo" (Ef 1.1-12).

Qualquer um que ler toda a epístola descobrirá que preceito, exortação e advertência são dirigidos aos eleitos da mesma maneira que a todos os outros santos ao longo da Bíblia. Citar as vezes que isto se repete seria mencionar grande parte da epístola. De fato esta é a prática geral dos escritores inspirados: tratar os santos como eleitos de Deus, como pessoas cuja salvação estava realmente segura, mas condicionada à perseverança deles na santidade. Por conseguinte, os autores sacros não deixaram de adverti-los, preveni-los e exortá-los da mesma maneira que esperaríamos ao considerarmos a natureza da certeza da qual falavam.

Mas se ainda houver insistência quanto ao fato de a eleição não estar revelada em nenhum caso aos indivíduos que compõem o grupo dos eleitos, e que se ela fosse revelada a qualquer um implicaria que as ameaças e advertências não lhe fariam sentido, respondo que tal concepção só está afirmando que se a certeza é revelada em qualquer momento e a respeito de qualquer coisa, então advertências, ameaças e temores ficariam inteiramente sem sentido. Mas não é verdade, como vimos no caso do naufrágio. Ali a certeza foi revelada aos indivíduos envolvidos. Os apóstolos tiveram também sua eleição revelada por Cristo, como vimos no caso de Paulo. Pode alguém questionar, conforme a razão, o fato de os apóstolos entenderem bem a sua eleição em Deus não só para o apostolado mas também para a vida eterna? Observe novamente o que Paulo diz, ao escrever à igreja em Éfeso, na passagem que acabamos de citar.

Ali o apóstolo expressamente se reconhece como um dos eleitos, como o faz em outros lugares e como sempre o revelam os outros apóstolos de forma direta ou por via da implicação. Contudo, Paulo e os outros apóstolos não sentiam que a advertência, a vigilância e o temor de pecar não lhes fizessem sentido.

Jó fala como se a certeza de sua salvação lhe tivesse sido revelada: "Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, o verão; e, por isso, o meu coração se consome dentro de mim" (Jó 19.25-27).

Pode alguém supor que Jó considerou as ameaças, advertências e temores de pecar como algo sem sentido para sua vida? Admite-se em geral que há verdades como plena certeza de fé ou esperança, ou a obtenção de determinado conhecimento de que a salvação nos é assegurada. Mas um santo que tenha essa obtenção seria menos afetado do que os outros por todas as ameaças, advertências e exortações quanto ao temor encontradas na Bíblia? Tais indivíduos deixariam de tremer diante da Palavra de Deus? Deixariam de passar o tempo de sua peregrinação aqui com medo? Deixariam de operar a salvação com temor e tremor? Deus já não os consideraria como pertencentes à classe das pessoas mencionadas em Isaías 66.2: "Porque a minha mão fez todas estas coisas, e todas estas coisas foram feitas, diz o SENHOR; mas eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito e que treme diante da minha palavra"?

Cristo orou pela salvação dos apóstolos, na presença deles, de maneira tal a não deixar lugar para que duvidassem de sua salvação definitiva, se esperassem que as orações do Senhor fossem respondidas. Ele fez o mesmo com respeito a todos os que nEle cressem pela palavra que os apóstolos pregassem. Agora, você afirmará que todos quantos estão conscientes da necessidade de crer em Jesus precisam deixar de ter confiança na eficácia de suas orações, antes de sentirem o poder, a propriedade e a influência das advertências, ameaças e dos vários avisos destinados aos eleitos de Deus para guardá-los de cair? A suposição é absurda. O quê! Temos de duvidar da eficácia das orações do Senhor a fim de crermos e apreciarmos a força de suas advertências? De fato, quanto mais santo o indivíduo e quanto mais seguro de sua salvação eterna, mais o pecado se lhe torna objeto de abominação, de medo e até de terror. Quanto mais santo, mais prontamente treme diante da Palavra de Deus, mais sensível e facilmente é afetado pela contemplação do pecado e da ira divina, mais terrível e horrível essas coisas lhe parecem e mais solenemente elas o afetam, embora o cristão tenha a mais plena garantia de que nunca provará o pecado ou o inferno. É realmente verdade, como teremos ocasião de comentar, que a Bíblia em geral presume que os indivíduos não estão seguros de sua salvação e nessa pressuposição passa a adverti-los.

Mas insiste-se, ainda, que, se o fim está assegurado, de igual modo os meios; se o fim é revelado como seguro, assim também ocorre com os meios, e que, portanto, é absurdo e implica incredulidade temer que negligenciaremos os meios ou que o fim ou os meios falharão. Mas, como dissemos, temer negligenciar os meios e temer que os negligenciaremos não são a mesma coisa. Podemos naturalmente negligenciá-los e há igualmente perigo real de os negligenciarmos, como haveria se não houvesse revelação a esse respeito, a menos que a revelação da certeza do seu uso seja um meio de garantir seu uso. Devemos temer negligenciá-los. De fato, há tanto perigo real de negligenciarmos os meios de nossa salvação, quanto há de algum evento vir a ser diferente do que se esperava. Não há maior perigo real em um caso do que no outro, mas em um caso é revelada a certeza, mas não no outro. Quando a certeza não é revelada, é razoável temer que o evento não venha a ser como desejamos ou como deveria. Mas quando a certeza é revelada não temos o direito de temer que será diferente de como foi revelado, nem que os meios serão de fato negligenciados; mas ainda assim devemos temer negligenciar os meios de tal maneira como se nenhuma revelação de certeza tivesse sido feita, à semelhança do que fez Paulo no caso do seu naufrágio.

Outra vez questiona-se: não devemos temer que nenhum dos santos venha a se perder e orar por eles sob a influência desse medo? Eu respondo que não. Os santos são os eleitos. Nenhum dos eleitos de Deus se perderá. Devemos orar por eles como Cristo orou pelos apóstolos e como orou por todos os crentes, não com medo de que se perderão, pois seria orar em incredulidade, mas devemos orar por todos os que são chamados santos para que perseverem até o fim e sejam salvos com a confiança de que nossa oração será respondida. Mas dizem que Paulo expressou dúvida com respeito à salvação das igrejas na Galácia. Respondo que o apóstolo não expressou dúvida a respeito da salvação definitiva delas. Ele afirma: "Eu bem quisera, agora, estar presente convosco e mudar a minha voz; porque estou perplexo a vosso respeito" (Gl 4.20). Mas na margem se lê: "estou perplexo a vosso respeito".1 No capítulo seguinte, declara: "Confio de vós, no Senhor, que nenhuma outra coisa sentireis; mas aquele que vos inquieta, seja ele quem for, sofrerá a condenação" (Gl 5.10). Paulo se posicionou com zelo para corrigir essas igrejas de erro e expressa plena confiança quanto ao resultado, e em nenhum lugar, segundo vejo, deu a entender que duvidava de que aqueles irmãos seriam por fim salvos.

Mas dizem ainda que se a salvação de todos os santos está garantida e esta certeza é revelada, não há, então, perigo real de negligenciarem os meios necessários ou de se perderem. Assim, as advertências, ameaças e os temores são inúteis; a certeza sendo concedida, é irracional e impossível temer sem duvidar da verdade de Deus; a certeza é certeza, pouco importa que tipo de certeza seja; se foi afirmado que o evento está assegurado, todo o perigo e -- claro -- toda a causa de medo estão fora de questão.

A essa forma da objeção respondo que ela procede da suposição de que não há perigo de os santos caírem, se Deus revelou a certeza de sua salvação definitiva. Mas o que queremos dizer por perigo? Já foi dito que todos os eventos estão assegurados desde a eternidade e que todas as circunstâncias e condições para que aconteçam também o estão. De forma que nunca há perigo real que produza incerteza quanto a possibilidade de algum evento vir a ser diferente do que é esperado. Por perigo, portanto, não se deseja dizer que realmente haja alguma incerteza a respeito de como alguma coisa acontecerá. Mas tudo o que se pretende afirmar corretamente por perigo é o fato de haver uma possibilidade natural e, humanamente falando, uma probabilidade de que algo possa vir a ser diferente do planejado; essa probabilidade, humanamente falando, provém das circunstâncias do caso e, até onde podemos julgar, do curso dos eventos, deixando-nos a impressão de que uma coisa possa não acontecer como teria de acontecer.

Uma possibilidade natural sempre existe a respeito da queda e perdição final dos santos, e, pelo menos na maioria dos casos, as circunstâncias são tais que, humanamente falando e à parte da graça de Deus, não há apenas perigo real, mas certeza de que não alcançarão a vida eterna. Há, humanamente falando, muita chance de caírem e se perderem. Este perigo é tão real quanto se nada de certeza houvesse sido revelado. O evento teria sido tão certo sem a revelação da certeza quanto com a revelação dela, a menos que seja verdade -- o que em muitos casos suponho -- que a revelação da certeza ajuda a garantir a perseverança.

Até agora respondi à objeção da doutrina da perseverança, supondo que a certeza da salvação dos santos é revelada, no sentido de que podem ter a certeza da própria salvação. Mostrei, como confio, que, ao admitir tal fato como verdadeiro, a natureza da certeza deixa pleno espaço para a influência de um saudável senso de perigo e para o sentimento de esperança e medo. Não só a salvação de todos os verdadeiros santos, como também as suas características estão reveladas na Bíblia. De forma que lhes é possível, individualmente, possuir satisfatória garantia de salvação de acordo com o conhecimento de que são santos. E, como foi mostrado, sem dúvida é verdade, que, em alguns casos, nos dias da inspiração -- e provavelmente em alguns outros desde a formação do cânon bíblico -- os indivíduos tiveram revelação direta pelo Espírito Santo de que eram santos e aceitos por Deus.

Mas na grande maioria dos casos em todos os tempos até hoje os santos não tiveram revelação pessoal e clara, nem mesmo evidência, de ser santos, exceto aquilo que recolhem de uma experiência, a qual, em sua visão, concorda com a descrição da Bíblia sobre o caráter dos santos. Quando, por exemplo, Pedro endereçou suas epístolas aos santos eleitos, embora considerasse a salvação deles assegurada, o apóstolo não distinguiu os indivíduos nome por nome, mas deixou que se assegurassem de sua eleição e santidade pela consciência de possuir o caráter pertencente aos santos. Pedro não revelou a qualquer um em particular o fato da sua eleição. Isto é fato na grande maioria das cartas escritas às igrejas. Embora fossem endereçadas a um corpo, como eleitos e santos, tais indivíduos, com isto, não deveriam deduzir que todos eram santos ou eleitos, mas lhes cabia aprender o fato de que os verdadeiros santos seriam conhecidos a partir do seu caráter consciente.

Vimos, em outro lugar, que a Bíblia apresenta a perseverança, no sentido já explicado, como atributo do caráter cristão e, portanto, ninguém pode ter evidência de que é santo mais do que está consciente de permanecer em obediência. Se os santos permanecem na luz e têm a certeza de que são santos, vimos o sentido no qual podem ser influenciados pela esperança e pelo temor, bem como o sentido mediante o qual a lei moral com suas sanções lhes pode ser útil. Mas quando um santo apóstata, tem de perder a evidência de ser santo e, então, todas as advertências e ameaças podem entrar em pleno vigor a seu respeito. Ele não está perseverando e -- claro -- tem de deduzir que não é santo. Assim, a doutrina da perseverança dos santos não lhe pode servir de consolo. Está de fato contra ele, pois essa doutrina revela que os santos perseveram; assim, a cada dia que o desviado vive na apostasia, fica menos evidente que ele é santo. É manifesto que a Bíblia, em sua maior parte, foi escrita na pressuposição de que os santos, como indivíduos, não sabem com segurança se são eleitos e não têm a certeza da própria salvação. Trata-os como se houvesse verdadeira incerteza a respeito da salvação, ou seja, como se, na qualidade de indivíduos, não estivessem seguros da salvação. Apresenta a salvação dos verdadeiros santos como assegurada, mas revela que muitos santos professos caíram e os adverte contra o fato de serem presunçosos e auto-iludidos quanto à sua confissão, experiência e aos seus privilégios. Apresenta a ilusão como um grande perigo e os exorta a examinar e provar a si mesmos se verdadeiramente são santos. As advertências encontradas na Bíblia têm, em grande parte, essas características, ou seja, pressupõem que os indivíduos podem enganar-se e presunçosamente presumir a própria eleição, santidade e certeza dos privilégios, relações e experiências. A inspiração, portanto, passa a adverti-los, pressupondo que não têm consciência da certeza da própria salvação. Logo teremos oportunidade de examinar algumas passagens que ilustrarão e confirmarão o que acabei de observar.

Assim, mediante a maneira pela qual a Bíblia foi escrita, não há, portanto, segundo percebo, real dificuldade em descrever a pressuposição de que a doutrina sob consideração é verdadeira. Pelo contrário, parece-me que as Escrituras são justas como se esperaria, sendo essa pressuposição verdadeira. Quando consideramos a natureza da certeza em todos os casos e também que a grande massa de cristãos professos não tem revelação segura de serem verdadeiros santos, que há grande perigo real de engano com respeito ao nosso próprio caráter e que muitos estão e foram enganados; repito que quando consideramos essas coisas não pode haver dificuldade em descrever a maneira pela qual os santos professos e os verdadeiros santos são tratados na Palavra de Deus.

 

Mais objeções respondidas.2

4. Uma quarta objeção a essa doutrina é que se por perseverança dos santos se deseja afirmar que tenham um viver de obediência habitual a Deus, então os fatos estão contra.

A essa objeção respondo: Quando emprego a expressão perseverança dos santos, quero afirmar que subseqüente à regeneração, a santidade é a regra de vida; o pecado, apenas a exceção. Mas dizem que os fatos o contradizem.

(1) O caso do rei Saul é apresentado como exemplo pertinente para sustentar a objeção.

A isto respondo: Nem de longe está claro que Saul algum dia foi verdadeiramente regenerado. Quanto à sua indicação ao trono de Israel, parece ter sido alvo de iluminação divina no que tange a ser grandemente mudado em seus pontos de vista e comportamento, bem como a ter outro coração, tanto que profetizou. Mas a Bíblia em nenhum lugar insinua que ele se tornou verdadeiramente regenerado, um genuíno devoto filho de Deus. Não é incomum que mudanças semelhantes sejam testemunhadas em muitas pessoas e que sejam evidentemente efetuadas pela iluminação do Espírito Santo, não havendo, ainda assim, boa razão para acreditarmos que tais indivíduos foram verdadeiramente regenerados. Da história de Saul, subseqüente à mudança da qual estamos falando, não reunimos absolutamente nada que pareça verdadeira devoção. O seu caso não pode ser corretamente levantado como objeção à doutrina em questão, pelo fato óbvio de que falta evidência de que algum dia ele tenha sido santo. Sua profecia, como é evidente do contexto no qual é pronunciada, significou apenas falar fervorosamente de assuntos religiosos. Ele foi tão iluminado que por algum tempo manifestou entusiasmo considerável nos assuntos da religião, chegando a entrosar-se com as escolas de profetas e a interessar-se pelos seus exercícios. Mas isto só foi semelhante ao que muitas vezes testemunhamos, quando os fins e todas as circunstâncias propriamente considerados mostram com clareza que a verdadeira regeneração não aconteceu. Quem já não viu pessoas terem temporariamente outro coração, sem que este se tornasse santo?

(2) Dizem que Davi não perseverou em obediência no sentido de que esta era a regra e o pecado apenas a exceção. A isto respondo:

(a) Tal alegação não quer dizer que haja alguma dúvida em relação à salvação final de Davi.

(b) Que Davi não perseverou, no sentido definido acima, requer prova. Seus salmos, junto com toda a história de sua vida, mostram que ele era homem altamente espiritual. Era um tipo eminente de Cristo e, para alguém em suas circunstâncias, constituía-se um santo notável. E certo que Davi praticou a poligamia e fez muitas coisas que, para nós, à luz do Evangelho, seriam pecado. Mas é preciso considerar que Davi estava sob uma dispensação de obscuridade comparativa e, portanto, muitas coisas que hoje nos são ilícitas e pecaminosas não o eram para ele. Que Davi, com poucas exceções em termos de comparação, viveu segundo a luz disponível não pode de forma sensata ser questionado. A Bíblia afirma que ele foi homem segundo o coração de Deus. Sei que essa característica lhe diz respeito como rei, mas sei também que, como rei, isto não poderia ter sido dito dele, a menos que tenha temido e servido o Senhor e, em geral, tenha vivido segundo a luz que o cercava.

(3) Diz-se, também, que o rei Salomão não perseverou no sentido defendido neste discurso.

Sobre Salomão, diria que num período de sua vida -- por quanto tempo não se sabe -- caiu em lastimosa apostasia e parece ter em algum sentido tolerado a idolatria. Deduz-se que sua apostasia tenha sido definitiva do fato de que a idolatria foi praticada em Israel, mesmo depois do seu suposto arrependimento; até o último dia em que viveu era permitido que o povo oferecesse sacrifícios e queimasse incenso nos lugares altos, portanto, seu arrependimento não seria genuíno.

A isto respondo que o mesmo também aconteceu durante o reinado de alguns dos reis piedosos que lhe sucederam. Provavelmente em virtude de que nem Salomão, nem seus sucessores, tiveram durante considerável tempo poder ou influência política suficiente para abolir por completo a idolatria. As pessoas estavam grandemente divididas em suas opiniões religiosas e cultuais. Muitos eram sacerdotes e devotos dos bosques e lugares altos e multidões das classes elevadas e mais influentes mantinham-se fiéis aos seus ídolos. Era questão muito difícil dar um fim eficaz à idolatria e talvez fosse impossível nos dias de Salomão e por muito tempo depois. As esposas e concubinas idolatras de Salomão tinham, sem dúvida, exercido grande influência em tornar popular a idolatria entre o povo e só depois de várias gerações os reis piedosos parecem ter tido poder político suficiente para banir a idolatria da nação. A apostasia definitiva de Salomão, portanto, não pode ser deduzida do fato de que a idolatria continuou sendo praticada na nação até muito tempo depois de sua morte. Não há razão para crermos que ele, pessoalmente, tenha continuado em sua prática.

Mas dos escritos de Salomão podemos reunir evidências suficientes de que, em geral, ele não viveu uma vida depravada, embora tivesse caído em muitos pecados lastimosos. Eclesiastes parece ter sido escrito depois de ter voltado da apostasia, como se mostra pelo fato de o livro conter muitas declarações de seus pontos de vista e experiências enquanto perambulava longe de Deus. Parece-me que o livro é inexplicável sob outra suposição. Em suas andanças distante de Deus -- como é comum -- Salomão caiu em grandes dúvidas e perplexidades com respeito ass obras e os caminhos de Deus. Ele ficou cético e, no livro em consideração, expõe as visões céticas que alimentara. Mas Eclesiastes, analisado de forma completa, contém evidências conclusivas de devoção na época em que foi escrito. Isto provavelmente não será questionado.

(4) Diz-se, ainda, que nossa observação do dia-a-dia dos crentes entra em conflito com a doutrina em questão. Admito que, até onde vai a observação humana, isto seja verdade. Em outras palavras, que muitas pessoas parecem nascer de novo, caminhar bem durante certo tempo e depois cair e, aparentemente, viver e morrer em pecado. Mas é preciso notar que a observação não pode ser conclusiva neste assunto porque não podemos saber com certeza se em algum dos casos há pouco aludidos houve verdadeira conversão a Deus. Conseqüentemente, a objeção carece de prova. Se soubéssemos que tais pessoas foram verdadeiramente regeneradas e depois caíram, viveram e morreram em pecado, concluir-se-ia que a doutrina da perseverança, ao menos na forma pela qual a declarei, não pode ser verdadeira. Mas não podemos sabê-lo com certeza pela observação. Se, como confio, descobrimos ser verdadeiro em nosso exame que a Bíblia ensina a doutrina em questão com clareza, na forma pela qual a declarei, tem de se concluir que a observação não pode contestá-la, pelo motivo de que se trata de algo que não se encontra ao alcance da observação. Esta não nos permite admitir certeza de qualquer espécie ou grau de evidência que abale o testemunho seguro da Bíblia.

5. Mas também apela-se à consciência para subverter esta doutrina. Dizem que os verdadeiros santos, pelo menos em algumas instâncias, sabem que viveram grande parte da vida em pecado e até na maior parte dos dias subseqüentes à regeneração.

Essa objeção pode ser respondida substancialmente como foi a última. É verdade que os santos podem saber que foram regenerados e também é verdade que muitos podem pensar que sabem, mesmo estando enganados. Uma pessoa pode saber que está acordada, mas com isto não se conclui que ninguém possa saber por si mesmo que está desperto enquanto dorme. Mas se sob análise descobriu-se que a Bíblia ensina a doutrina da perseverança dos santos, no sentido em que a defini, temos de nos render à objeção fundada na experiência e admitir que tais experiências em nada pesam contra o testemunho de Deus. Claro que a objeção não pode ser conclusiva, porque ela não é de natureza a não admitir erro ou dúvida. A Bíblia define todos os atributos essenciais do caráter cristão. Se sob análise a perseverança no sentido aqui insistido é comprovada como um desses atributos, é absurdo formar contra a doutrina a consciência da não perseverança. E presumir que nós, e não a Bíblia, podemos decidir quem é cristão e quais são os atributos essenciais do caráter cristão.

6. Mas também é objetado à doutrina da perseverança dos santos que várias passagens das Escrituras ensinam que alguns verdadeiros santos caíram e se perderam. Passarei agora ao exame dessas passagens nas quais se busca apoio para contestar esta doutrina. A primeira passagem que comentarei é esta:

"Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem; e todos passaram pelo mar, e todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de um mesmo manjar espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo. Mas Deus não se agradou da maior parte deles, pelo que foram prostrados no deserto. E essas coisas foram-nos feitas em figura, para que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. Não vos façais, pois, idolatras, como alguns deles; conforme está escrito: O povo assentou-se a comer e a beber e levantou-se para folgar. E não nos prostituamos, como alguns deles fizeram e caíram num dia vinte e três mil. E não tentemos a Cristo, como alguns deles também tentaram e pereceram pelas serpentes. E não murmureis, como também alguns deles murmuraram e pereceram pelo destruidor. Ora, tudo isso lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos. Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia" (1 Co 10.1-12).

Acerca desta passagem dizem que a história dos israelitas é aqui apresentada como aviso para os verdadeiros cristãos. Por conseguinte, o apóstolo deve ter presumido que os israelitas que caíram eram verdadeiros santos ou não teria havido pertinência ou força nesta alusão. A isto respondo que a pertinência e força da alusão me parecem ter sido como segue. Os israelitas compunham a igreja visível de Deus. Na ocasião mencionada, todos eram religiosos. Todos possuíam grande luz e privilégios, quando comparados ao restante do mundo. Eles se sentiam confiantes de sua aceitação para com Deus e de sua conseqüente segurança e salvação. Mas Deus não se agradou de muitos dos israelitas. Alguns se mostraram idolatras e foram mortos. Que isto -- diz o apóstolo -- lhe sirva de aviso. Você é de igual modo religioso. É membro da igreja visível de Deus para a qual as promessas foram feitas. Você tem grande luz e privilégios, quando comparado ao mundo em geral. Você pode pensar que está inteiramente seguro de sua salvação definitiva. Mas lembre-se que a história da antiga igreja foi escrita em seu benefício; a destruição daqueles referidos há pouco foi registrada para seu aviso. Não seja arrogante, mas tema. Não seja presunçoso por ser membro em boa posição da igreja visível e possuir muita luz e muitos privilégios. Mas lembre-se que, no passado, muitos que, nesse aspecto, eram iguais a você, se perderam: "Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia" (1 Co 10.12).

Se o apóstolo tivesse o propósito de dar a impressão que os israelitas que pereceram no deserto eram verdadeiros santos, e que os verdadeiros santos caem e se perdem, sem dúvida teria dito que aquele que está em pé, em vez de "aquele que cuida estar em pé, olhe que não caia". Robinson afirmou que o termo equivalente, no grego, foi corretamente traduzido por cuida nessa passagem. O significado do apóstolo parece ter sido este: Aqueles que estavam muito confiantes de sua segurança, segundo as circunstâncias e o caráter imaginário, haviam sido rejeitados e se perderam. Assim, olhe que você não caia para que não fique em situação semelhante e do mesmo modo enganado; se você cuida estar em pé, pode cair e perecer.

Mas alguém pode contraditar, afirmando que o apóstolo fala que todos quantos caíram comeram do manjar espiritual e beberam da pedra que era Cristo, portanto, deveriam ser verdadeiros santos. A isto respondo que o apóstolo usa linguagem universal e fala que todos os israelitas fizeram estas coisas, mas quem vai defender com sobriedade que ele realmente quis que sua afirmação fosse entendida como se referisse a todos os israelitas que passaram pelo mar como verdadeiros santos? O que Paulo afirma não torna inevitável a conclusão de que qualquer um deles fosse verdadeiramente regenerado e santo. Todos foram batizados em Moisés, quer dizer, todos foram introduzidos no concerto do qual era mediador. Todos comeram do mesmo pão espiritual, ou seja, do maná com o qual o Senhor os alimentou. Todos beberam da pedra espiritual, isto é, da água que jorrou da pedra quando Moisés a golpeou com a vara e cuja pedra tipificava Cristo, como também todos comeram do maná. Será que o apóstolo pretendeu dizer que todos os israelitas entenderam o significado típico dessa água e desse maná, e que todos eram pessoas verdadeiramente espirituais ou regeneradas? Acho que não. Parece-me que tudo quanto quis dizer foi que toda a igreja dos judeus, na ocasião, era participante da graça de Cristo no que concerne a receber esse batismo, a ter esse pão e água espirituais e também a desfrutar grande luz e muita instrução milagrosa, mas que, não obstante, Deus estava descontente com muitos deles. O fato de serem batizados pela passagem no mar Vermelho não implicou que eles o entendessem, por ocasião do evento, nem a afirmação de que comeram a comida espiritual e beberam da pedra espiritual sugere algo mais do que desfrutar esses grandes e altos privilégios, considerando-se, por isso, muito seguros. É certamente forçar o sentido fazer o apóstolo afirmar que todos os israelitas que atravessaram o mar eram verdadeiros santos. Com efeito, é duvidoso pensar que ele quis afirmar a verdadeira devoção de qualquer um dos israelitas. Não era essencial ao seu propósito fazer assim.

Ao examinar a classe de passagens citadas para provar que alguns santos verdadeiros caíram da graça e se perderam, estou apenas preocupado em mostrar que essas passagens mediante construção justa não tornam inevitável tal conclusão. Posso admitir que se a doutrina da perseverança não está claramente ensinada na Bíblia, a análise equivocada de alguma das classes de textos em questão poderia conduzir à conclusão de que alguns -- ou muitos -- santos verdadeiros se perderam.

Mas da análise anterior, parece que a doutrina é clara e inequivocamente ensinada na Bíblia. Tudo o que precisa ser mostrado da classe de textos sob consideração é que, quando interpretados segundo a razão, não ensinam real e inequivocamente que alguns verdadeiros santos se perderam. Esta apresentação vindicará a Palavra de Deus suficientemente contra o fato de lhe imputar autocontradição, tanto na afirmação quanto na negação da mesma doutrina. Observe que não me é exigido mostrar que as passagens em questão não podem ser interpretadas desse modo e com plausibilidade considerável no que tange a fazer com que contradigam esta doutrina. Mas tudo o que me é exigido mostrar é que elas, por justa construção, necessariamente não a contradizem; que elas não tornam inevitável a admissão que a Bíblia se contradiga, ou que uma construção diferente deva ser dada às passagens que parecem ensinar esta doutrina.

Com estas observações passarei ao exame de 2 Pedro 2.9-22: "Assim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos e reservar os injustos para o Dia de Juízo, para serem castigados, mas principalmente aqueles que segundo a carne andam em concupiscências de imundícia e desprezam as dominações. Atrevidos, obstinados, não receiam blasfemar das autoridades; enquanto os anjos, sendo maiores em força e poder, não pronunciam contra eles juízo blasfemo diante do Senhor. Mas estes, como animais irracionais, que seguem a natureza, feitos para serem presos e mortos, blasfemando do que não entendem, perecerão na sua corrupção, recebendo o galardão da injustiça; pois que tais homens têm prazer nos deleites cotidianos; nódoas são eles e máculas, deleitando-se em seus enganos, quando se banqueteiam convosco; tendo os olhos cheios de adultério e não cessando de pecar, engodando as almas inconstantes, tendo o coração exercitado na avareza, filhos de maldição; os quais, deixando o caminho direito, erraram seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que amou o prêmio da injustiça. Mas teve a repreensão da sua transgressão; o mudo jumento, falando com voz humana, impediu a loucura do profeta. Estes são fontes sem água, nuvens levadas pela força do vento, para os quais a escuridão das trevas eternamente se reserva; porque, falando coisas mui arrogantes de vaidades, engodam com as concupiscências da carne e com dissoluções aqueles que se estavam afastando dos que andam em erro, prometendo-lhes liberdade, sendo eles mesmos servos da corrupção. Porque de quem alguém é vencido, do tal faz-se também servo. Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado. Deste modo, sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: O cão voltou ao seu próprio vômito; a porca lavada, ao espojadouro de lama".

Observe que o apóstolo chama as pessoas de quem fala de "fontes sem água, nuvens levadas pela força do vento", ou seja, sem chuva. Toda a descrição mostra que está falando dos falsos professos ou hipócritas. Infere-se que são santos caídos porque está escrito que "deixando o caminho direito, erraram seguindo o caminho de Balaão..." Mas isto não implica necessariamente que algum dia estivessem no caminho direito, mas que o deixaram no que diz respeito à vida exterior: nesse aspecto estiveram, sem dúvida, no caminho direito, caso contrário não teriam sido admitidos na comunhão da igreja.

Mas o texto afirma destes falsos professos que eles "engodam com as concupiscências da carne e com dissoluções aqueles que se estavam afastando dos que andam em erro". Esta descrição, todavia, não torna inevitável a conclusão de que escaparam de bom grado daqueles que andavam em erro, mas meramente que abandonaram no aspecto exterior e de forma temporária as práticas e companhias idolatras, fazendo confissão e vestindo a roupa do cristianismo.

Mas também está escrito: "Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado. Deste modo, sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: O cão voltou ao seu próprio vômito; a porca lavada, ao espojadouro de lama" (2 Pe 2.20-22).

Isto também não torna inevitável a conclusão de que tais indivíduos escaparam de bom grado das corrupções do mundo, mas apenas afirma que se reformaram exteriormente. O que registra o último versículo parece favorecer essa construção. O versículo 22 diz: "Deste modo, sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: O cão voltou ao seu próprio vômito; a porca lavada, ao espojadouro de lama". Em outras palavras, o cão voltou ao seu vômito porque continuou sendo cão, não mudou; a porca lavada voltou a se espojar na lama porque ainda continuava sendo porca e o fato de lavar-se não lhe mudou a natureza. Assim, o apóstolo deixa entender que o fato de as pessoas em questão voltarem aos seus caminhos anteriores mostra que não experimentaram nenhuma mudança radical, mas, pelo contrário, são como porca lavada, ainda pecadoras, limpas somente por fora, enquanto que por dentro permanecem como antes. Parece-me que isto é tudo o que pode ser entendido de forma sensata dessa passagem.

Agora me voltarei a 1 Timóteo 1.19,20: "Conservando a fé e a boa consciência, rejeitando a qual alguns fizeram naufrágio na fé. E entre esses foram Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar". Sobre este texto posso dizer que o apóstolo estava escrevendo a Timóteo na qualidade de eminente mestre religioso e lhe estava dando avisos concernentes à sua influência nessa relação. Himeneu e Alexandre, como podemos deduzir, mediante o ensino mais claro em outras passagens, eram mestres religiosos que rejeitaram ou perverteram a verdadeira fé ou doutrina do Evangelho e, assim, naufragaram. Eles abandonaram a fé e a boa consciência, por isso tinham feito naufrágio do verdadeiro Evangelho. Esta passagem não ensina que esses homens eram verdadeiros cristãos, nem implica necessariamente que alguém que os acompanhasse fosse verdadeiro santo. A expressão "rejeitando a qual alguns" não implica necessariamente que tinham verdadeira fé e boa consciência, mas apenas que ensinaram coisas inconsistentes com ambas as verdades; ou pode significar que rejeitaram ou recusaram a fé e a boa consciência; ou que praticaram e ensinaram coisas incoerentes quer com a verdadeira fé, quer com o verdadeiro Evangelho, quer com a boa consciência. Por isso, foram de encontro a uma pedra e naufragaram suas almas, bem como as daqueles que os seguiam. Mas isto não prova nada a respeito de terem sido algum dia verdadeiros santos.

O apóstolo estava falando em linguagem popular e representou as coisas como elas pareciam ao observador. Assim, deveríamos falar de convertidos espúrios. Por certo não me parece que esta passagem garantiria, sem construção forçada, a conclusão de que alguns verdadeiros santos se perderam, mesmo interpretada à parte daquelas passagens que, como vimos, parecem inequivocadamente ensinar a doutrina da perseverança. Muito menos quando tais passagens são consideradas, somos -- como penso que vimos -- autorizados a interpretar a passagem em apreço fazendo com que as contradiga, ou torne inevitável modificar sua construção como defendem aqueles que negam a doutrina em questão. Se a doutrina da perseverança foi realmente ensinada na Bíblia, não deveríamos acreditar nela; mas se foi ensinada, não devemos levianamente rejeitá-la. Precisamos considerar cada passagem com franqueza e entender, se o pudermos, o que está na mente de Deus conforme revelado.

O caso de Judas tem sido reputado como exemplo de apostasia absoluta e conseqüente perdição. Dizem que nos Salmos Judas é mencionado como amigo íntimo de Cristo em quem Ele confiou. "Até o meu próprio amigo íntimo, em quem eu tanto confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar" (SI 41.9).

Não há razão para crermos que o Salmo 41 diga respeito primariamente a Cristo ou a Judas. Cristo cita o versículo 9, como é comum no Novo Testamento, não porque falava originalmente de si ou de Judas, mas porque o seu caso era igual ao do salmista. Na passagem em que Cristo cita estas palavras, nega diretamente a idéia de que Judas seja um dos seus verdadeiros discípulos. Ele declara: "Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido; mas para que se cumpra a Escritura: O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calcanhar" (Jo 13.18).

Aqui Cristo ensina de forma clara que esse indivíduo, a quem se referiu nessas palavras, não era escolhido no sentido da salvação, ou no sentido de ser um verdadeiro santo. O Senhor diz:

"Mas há alguns de vós que não crêem. Porque bem sabia Jesus, desde o princípio, quem eram os que não criam e quem era o que o havia de entregar.

E dizia: Por isso, eu vos disse que ninguém pode vir a mim, se por meu Pai lhe não for concedido. Respondeu-lhe Jesus: Não vos escolhi a vós os doze? E um de vós é um diabo. E isso dizia ele de Judas Iscariotes, filho de Simão, porque este o havia de entregar, sendo um dos doze" (Jo 6.64,65,70,71).

Ele tinha escolhido doze para segui-lo como alunos ou discípulos, mas desde o início sabia que um deles era homem mau. Lemos em João 17.12: "Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse". Nesta passagem, Cristo disse ao Pai que nenhum dos que este lhe dera se perdera, a não ser o filho da perdição, que é Judas. Mas o significado da passagem é outro na oração de Cristo. Ele quis dizer que entre aqueles que o Pai lhe dera não perdera nenhum, mas o filho de perdição estava perdido para que as Escrituras se cumprissem.

A mesma forma de expressão é usada em Lucas 4.27: "E muitos leprosos havia em Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro". Neste versículo, a expressão ei me é usada no original não com o significado de exceto, mas como conjunção adversativamas. Naamã não era israelita, mas pagão. Cristo usou aqui a mesma forma de expressão que em João 17.12. Nesta passagem em Lucas está claro que Ele quis dizer que o profeta não foi enviado a um israelita, mas a um pagão. Esta mesma forma também é usada em Mateus 12.4: "Como entrou na Casa de Deus e comeu os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos que com ele estavam, mas só aos sacerdotes".

Aqui a mesma forma de expressão no original é usada como em João 17.12. O significado claro desta forma em Mateus 12.4 é mas, não exceto. Não era lícito a Davi, nem aos seus companheiros, comer os pães da proposição, mas era lícito aos sacerdotes. Lemos também em Atos 21.25: "Todavia, quanto aos que crêem dos gentios, já nós havemos escrito e achado por bem que nada disto observem; mas que só se guardem do que se sacrifica aos ídolos, e do sangue, e do sufocado, e da prostituição". Aqui a mesma forma é usada e o significado claro da fraseologia é justamente o que estou defendendo na passagem da oração de Cristo. Lemos igualmente em Apocalipse 21.27: "E não entrará nela coisa alguma que contamine e cometa abominação e mentira, mas só os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro". Aqui temos a mesma forma de expressão e as mesmas palavras no original são usadas no sentido que defendo. Não entrará na cidade coisa alguma que contamine e cometa abominação e mentira, mas só os que estão escritos no livro da vida do Cordeiro. Assim, fica fora de dúvida que Cristo pretendeu dizer em sua oração ao Pai: "Enquanto eu estava com eles no mundo, guardava-os em teu nome; tenho guardado aqueles que tu me deste e nenhum deles se perdeu, isto é, eu não perdi nenhum daqueles que tu me deste; mas o filho da perdição se perdeu de acordo com as Escrituras".

Parece-me que o contexto mostra o que o Salvador quis dizer com essa forma de expressão. Ele disse: "E eu já não estou mais no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós. Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse" (Jo 17.11,12), isto é: "Guarda-os em teu próprio nome e que nenhum deles se perca, pois enquanto eu estava com eles os guardei em teu nome e nenhum deles se perdeu; mas o filho de perdição se perdeu". É claro que não pretendeu dizer: "Eu perdi só um que tu deste", ou que em nome de seu Pai guardou a todos, exceto um dos que o Pai lhe dera. Cristo afirmou: "Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus, e tu mos deste, e guardaram a tua palavra. Agora, já têm conhecido que tudo quanto me deste provém de ti, porque lhes dei as palavras que me deste; e eles as receberam, e têm verdadeiramente conhecido que saí de ti, e creram que me enviaste. Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus. E todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso sou glorificado. E eu já não estou mais no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós. Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse" (Jo 17.6-12).

Aqui o Senhor deixa claro que todos quantos o Pai lhe dera souberam e guardaram a Palavra de Deus. Eles creram e perseveraram, por isso Cristo foi glorificado em suas vidas. Visto que Ele os guardara em nome do Pai e nenhum se perdera, Cristo passa a orar, agora, para que o Pai os guarde em seu próprio nome. Todo aquele que ponderar bem sobre esta passagem dos versículos 6 a 12 verá, confio, que esta é a verdadeira visão do assunto. De qualquer modo, este não pode ser texto de prova para estabelecer o fato de que alguém caiu da graça, pela razão óbvia de que pode, de forma muito mais natural e com maior propriedade -- acho -- ser citado para sustentar a doutrina da perseverança à qual o texto é muitas vezes usado para contestar.

Consideremos outra passagem: "Então, Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete. Por isso, o reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis fazer contas com os seus servos; e, começando a fazer contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos. E, não tendo ele com que pagar, o seu senhor mandou que ele, e sua mulher, e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto tinha, para que a dívida se lhe pagasse. Então, aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Então, o senhor daquele servo, movido de íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem dinheiros e, lançando mão dele, sufocava-o, dizendo: Paga-me o que me deves. Então, o seu companheiro, prostrando-se a seus pés, rogava-lhe, dizendo: Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Ele, porém, não quis; antes, foi encerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida. Vendo, pois, os seus conservos o que acontecia, contristaram-se muito e foram declarar ao seu senhor tudo o que se passara. Então, o seu senhor, chamando-o à sua presença, disse-lhe: Servo malvado, perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste. Não devias tu, igualmente, ter compaixão do teu companheiro, como eu também tive misericórdia de ti? E, indignado, o seu senhor o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que devia. Assim vos fará também meu Pai celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas" (Mt 18.21-35).

Este texto é citado para provar que alguns caem da graça, especialmente os versículos 32 ao 34. Mas de toda esta passagem fica evidente que o Senhor quis lançar forte luz sobre a necessidade de um espírito perdoador e que este é condição de salvação. E uma parábola projetada a ilustrar esta verdade, mas não afirma como fato que qualquer pessoa verdadeiramente perdoada jamais se perde, nem o implica, como verá aquele que considerar a parábola inteira de forma apropriada. Implica de modo bastante claro que a pessoa perdoada se perde se vier a apostatar, mas não implica que tal pessoa jamais apostatará.

A seguir, considerarei o texto de 1 Timóteo 5.12: "Tendo já a sua condenação por haverem aniquilado a primeira fé". Esta passagem está no seguinte contexto:

"Nunca seja inscrita viúva com menos de sessenta anos, e só a que tenha sido mulher de um só marido; tendo testemunho de boas obras, se criou os filhos, se exercitou hospitalidade, se lavou os pés aos santos, se socorreu os aflitos, se praticou toda boa obra. Mas não admitas as viúvas mais novas, porque, quando se tornam levianas contra Cristo, querem casar-se; tendo já a sua condenação por haverem aniquilado a primeira fé. E, além disto, aprendem também a andar ociosas de casa em casa; e não só ociosas, mas também paroleiras e curiosas, falando o que não convém" (1 Tm 5.9-13).

A palavra traduzida por condenação nesta passagem freqüentemente se traduz por julgamento. O significado pode ser que as viúvas mais jovens se tornam levianas, sofrendo, por isso, o julgamento e, pelo menos durante algum tempo, desonram a confissão, rejeitando a primeira fé. Ou pode significar que eram propensas a se encontrar entre os que renunciavam a confissão da verdadeira fé professada no princípio. Elas eram viúvas jovens, incultas como as mulheres pagas o eram, e não pode causar surpresa o fato de muitas delas fazerem confissão espúria e depois, por leviandade, rejeitar a confissão e a desonrarem. Por isso, o apóstolo adverte a Timóteo contra uma recepção muito precipitada dessas viúvas, ou contra ter uma confiança apressada na realidade da devoção delas.

Dizem, repito, que das cartas de Cristo às igrejas da Ásia, registradas no Apocalipse, tomamos conhecimento que pelo menos algumas delas estavam em estado de apostasia contra Deus e que, a partir do fato de os julgamentos de Deus aniquilarem essas igrejas, há razão para crermos que a apostasia era completa e definitiva, bem como certa a sua destruição. A isto respondo que essas cartas foram escritas para as igrejas como corpo, da mesma maneira que os profetas falaram da igreja judaica. As coisas que os profetas declararam da igreja judaica o foram como a um corpo de santos professos, algumas gerações dos quais tinham devoção verdadeira, enquanto outras não. Os profetas reprovariam uma geração por sua apostasia, sem pretender afirmar que os indivíduos em particular não foram jamais verdadeiros santos, mas só querendo dizer que o corpo como tal estava em estado degenerado e apóstata, comparado aos tempos anteriores. Assim Cristo escreve às igrejas da Ásia e as reprova por sua condição apóstata, afirmando que tinham caído e abandonado o primeiro amor. Com isto não devemos deduzir que Ele pretendeu reprovar aqueles que, como indivíduos, tinham sido verdadeiramente convertidos, mas apenas que essas igrejas como corpo tinham caído e agora eram também compostas de membros que estavam no estado do qual Ele reclamava.

Quando foram fundadas pelos apóstolos e primitivos ministros, as igrejas da Ásia eram, sem dúvida, cheias de fé, zelo e amor. Mas as coisas mudaram. Muitos dos membros tinham sofrido algum tipo de transformação e talvez todos os que originalmente compunham essas igrejas estivessem mortos antes de essas cartas serem escritas. Pode ser que tivesse havido grandes mudanças entre a comunidade de cada uma dessas igrejas, visto que foram tratadas evidentemente como corpos. Mas não se pode deduzir com sensatez do que está registrado que todas as pessoas em particular tinham caído de um estado de elevada espiritualidade para a apostasia, mas que isso era verdade no aspecto da coletividade, quando comparada aos estados anteriores das igrejas. Não se pode aceitar que essas cartas contestem a doutrina em questão, pois o máximo que elas afirmam é que essas igrejas como corpos estavam, na ocasião, em estado de declínio.

Até onde sei, os textos que acabamos de examinar são as principais passagens empregadas para contestar a doutrina em questão. Li atentamente várias vezes as opiniões do Sr. Fletcher em sua obra Scripture Scales, bem como as passagens por ele citadas para contestar esta doutrina. Sua principal base está nos numerosos textos que implicam a possibilidade e o perigo de queda, em vez de estar em passagens que inequivocamente ensinam que alguém caiu ou cairá. Não estou ciente de que algum escritor respeitável tenha colocado muita ênfase em outras passagens além das que examinei, ensinando expressamente ou implicando inequivocamente o fato da queda e ruína dos verdadeiros santos. Pode haver tais escritores e tais passagens como as que comentei, mas se há outras, não me lembro de tê-las visto.

 

Observações finais

1. Se a doutrina sob consideração não é verdadeira, não vejo em que base podemos afirmar, ou até esperar com confiança, que muitos de nossos amigos piedosos que morreram foram para o céu. Suponha que eles se mantiveram fiéis até os últimos momentos de vida. Se não podemos acreditar que a fidelidade de Deus prevaleceu para guardá-los no último conflito, que razão temos para afirmar que foram preservados do pecado e da apostasia nos últimos momentos de vida e foram salvos? Se a graça soberana de Deus hão os protege das astúcias e maldades de Satanás nos momentos de fraqueza e no naufrágio de sua habitação de barro, o que será feito de tais fiéis? Tenho de confessar que se eu não esperasse a convencional misericórdia e fidelidade de Deus para prevalecer e sustentar a alma sob tais circunstâncias, teria muito pouca expectativa de que alguém fosse salvo. Se eu tivesse confiança que os cristãos não cederiam enquanto ainda estão com saúde, à parte da verdade desta doutrina, ainda esperaria que Satanás os vencesse no fim, quando passassem pela última grande luta. Quem pode confiar na força dos próprios propósitos?

2. Mas não esperaria que eu ou alguém perseverasse em santidade em seu melhor estado, mesmo por um dia ou um momento, se não fosse guardado pelo poder de Deus, mediante a fé, mais do que esperaria voar para o céu. Como disse antes, não há esperança na perseverança de ninguém, exceto na medida em que a livre graça anteveja e garanta a cooperação do livre-arbítrio. A alma deve ser chamada de forma eficaz e perpétua, ou não seguirá Cristo por um momento sequer. Repito que por chamada eficaz não quero dizer chamada irresistível. Não quero dizer chamada que não possa ser resistida; por chamada eficaz quero afirmar chamada que não é de fato resistida, chamada que garante mesmo a obediência voluntária da alma. Esta é a minha única esperança a respeito de mim ou das outras pessoas. Esta graça eu considero outorgada a mim, segundo a aliança da graça, ou como recompensa da obediência de Cristo até a morte. E empenhada a garantir a salvação daqueles que o Pai tem dado ao Filho desde a eternidade. O Espírito Santo lhes é dado para garantir-lhes a salvação, e não tenho esperança de que os outros algum dia venham a ser salvos. Mas estes, cada um, com certeza serão salvos. Não há e não pode haver esperança para os outros. Eles podem arrepender-se, mas não querem. Eles poderiam ser salvos, se cressem e agissem de acordo com as condições da salvação, mas não o farão.

Vimos que ninguém vai a Cristo, exceto quando é levado pelo Pai, e que o Pai leva a Cristo somente aqueles que deu ao Filho. Vimos, também, que é desígnio do Pai que aqueles aos quais deu a Cristo, Ele não perca nenhum, mas que os ressuscite no último dia. Esta é o única esperança de que alguém será salvo. Destrua este fundamento e o que fará o justo? Retire da Bíblia a doutrina da fidelidade determinada por Deus a Cristo -- a verdade que o Pai deu a Ele certo número cujo salvação prevê que pode e deve garantir -- e eu me desespero de mim e de todas as outras pessoas. Onde há outra base de esperança? Não sei.

 

1 Finney usa a King James Version, que traduz para o inglês a parte final de Gaiatas 4.20, parecendo que Paulo tivesse alguma dúvida a respeito daquela igreja. Por isso menciona a nota variante de sua Bíblia. ]á as traduções mais recentes, como a Almeida Revista e Corrigida, Almeida Revista e Atualizada e a Nova Versão Internacional assim traduzem: "estou perplexo a vosso respeito". (N. do T.)

2 Na edição de 1878, este ponto dá início a uma nova aula intitulada: A Perseverança dos Santos.

 

 

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