A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 19

EVIDÊNCIAS DA REGENERAÇÃO

 

Observações introdutórias

1. Averiguando quais são e quais não são as evidências da regeneração, sempre temos de manter em mente o que é e o que não é regeneração, o que está e o que não está implícito no tema.

2. Temos de reconhecer constantemente o fato de que os santos e os pecadores têm constituições e suscetibilidades naturais precisamente semelhantes e que, portanto, muitas coisas são comuns a ambos. O que é comum a ambos não pode, claro, ser evidência de regeneração.

3. Que nenhum estado da sensibilidade tem caráter moral em si mesmo. Que a regeneração não consiste, ou implica, mudança física quer do intelecto, quer da sensibilidade, quer da faculdade da vontade.

4. Que a sensibilidade do pecador é suscetível a todo tipo e grau de sentimento possível aos santos.

5.0 mesmo é verdade da consciência dos santos e dos pecadores e da inteligência em geral.

6. O que vamos investigar é: Quais são as evidências de uma mudança na intenção última. Qual é a evidência de que a benevolência é a escolha, preferência e intenção governantes da alma? É questão clara e exige -- e pode ter -- resposta clara. Mas tanto erro prevalece no que tange à natureza da regeneração e, por conseguinte, na análise de quais são as evidências da regeneração, que precisamos de paciência, discernimento e perseverança e também de imparcialidade para chegarmos à verdade sobre o tema.

 

Em que concordam a experiência e a vida externa dos santos e pecadores.

Está claro que santos e pecadores podem ser semelhantes em tudo o que não consiste ou procede necessariamente da atitude da vontade, quer dizer, em tudo o que é constitucional ou involuntário. Por exemplo:

1. Ambos podem desejar a própria felicidade. Este desejo é constitucional e, obviamente, comum a santos e pecadores.

2. Ambos podem desejar a felicidade dos outros. Isto também é constitucional e, claro, comum a santos e pecadores. Não há caráter moral nesses desejos mais do que há no desejo por comida e bebida. Que as pessoas tenham desejo natural pela felicidade dos outros é evidente do fato de que manifestam prazer quando os outros estão contentes, a menos que tenham alguma razão egoísta para invejar, ou que a felicidade alheia seja de algum modo incompatível com a delas. As pessoas também manifestam intranqüilidade e pesar quando vêem os outros na miséria, a menos que tenham alguma razão egoísta para desejar a miséria alheia.

3. Os santos e pecadores podem de forma semelhante temer a própria miséria e a miséria dos outros. Isto é estritamente constitucional e, portanto, não tem caráter moral. Soube que homens muito maus e que tinham sido infiéis, quando se convenceram das verdades do cristianismo, manifestaram grande preocupação por suas famílias e vizinhos; e, em determinada oportunidade, ouvi falar de um ancião que, quando convencido da verdade, foi e advertiu os vizinhos a fugir da ira vindoura, declarando ao mesmo tempo sua convicção de que não havia misericórdia para si, embora sentisse profunda preocupação pelos outros. Casos semelhantes são repetidas vezes testemunhados. O caso do homem rico no inferno parece ser um exemplo do que falo ou ilustra a mesma verdade. Embora soubesse que seu caso era desesperador, ele, não obstante, desejou que Lázaro fosse enviado para advertir seus cinco irmãos a que não fossem para aquele lugar de tormento. Nesse episódio, e no do ancião citado há pouco, parece que não só desejaram que os outros evitassem a miséria, mas tentaram preveni-los e usaram os meios que estavam ao alcance para salvá-los. Está claro que esse desejo tomou o controle da vontade e, evidentemente, o estado da vontade tornou-se egoísta. Era a busca da satisfação do desejo. Era a dor e o medo de ver a própria miséria que os levou a usar de meios para evitá-la. Isto não era benevolência, mas egoísmo.

Que fique claro que quando santos e pecadores desejam constitucionalmente não só a própria felicidade, mas também a felicidade dos outros, ambos podem semelhantemente se alegrar com a felicidade e segurança alheias, bem como nos convertidos ao cristianismo, e podem igualmente lamentar o perigo e a miséria dos que não são convertidos. Lembro-me bem, quando, longe de casa e ainda pecador impenitente, recebi uma carta de meu irmão mais novo, informando-me que se convertera a Deus. Ele era o primeiro e único membro da família que, então, tinha esperança de salvação. Na oportunidade -- e tanto antes como depois -- eu era um dos pecadores mais imprudentes e, não obstante, ao receber essa notícia, chorei de alegria e gratidão por ter sido possível que alguém tão irreligioso da família fosse salvo. Com efeito, era comum eu ser informado que os pecadores manifestavam grande interesse na conversão de amigos e expressavam gratidão por isso, embora não tivessem religião. Esses desejos não têm caráter moral em si. Mas na medida em que controlam a vontade, é egoísmo a vontade se entregar ao impulso em vez de se entregar à lei da inteligência.

4. Santos e pecadores podem concordar em desejar o triunfo da verdade e da justiça e a supressão do vício e do erro, por causa dos problemas que essas coisas causam em si mesmos e nos amigos. Esses desejos são, sob certas circunstâncias, constitucionais e naturais a ambos. Quando não influenciam a vontade deixam de ter caráter moral em si, mas quando influenciam a vontade, seu egoísmo assume um tipo religioso. Isto manifesta zelo em promover a religião. Se o desejo, e não a inteligência, controla a vontade é, portanto, egoísmo.

5. Os agentes morais constitucionalmente aprovam o que é certo e desaprovam o que é errado. Claro que santos e pecadores podem aprovar e se deleitar na bondade. Posso lembrar-me do choro por algo que na ocasião supus ser bondade, enquanto ao mesmo tempo não era religioso. Não tenho dúvida de que homens maus não só estão conscientes de aprovar a bondade de Deus, mas também se deleitam em contemplá-la. Isto é constitucional, tanto no que diz respeito à aprovação intelectual, como no que respeita ao sentimento de deleite. É grande engano supor que os pecadores nunca estão cientes de sentimentos de auto-satisfação e deleite na bondade de Deus. A Bíblia retrata os pecadores a se deleitarem, quando se aproximam de Deus. "Todavia, me procuram cada dia, tomam prazer em saber os meus caminhos; como um povo que pratica a justiça e não deixa o direito do seu Deus, perguntam-me pelos direitos da justiça, têm prazer em se chegar a Deus" (Is 58.2). "E eis que tu és para eles como uma canção de amores, canção de quem tem voz suave e que bem tange; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra" (Ez 33.32). "Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus" (Rm 7.22).

6. Os santos e pecadores podem semelhantemente não só aprovar com o intelecto, mas ter sentimentos de profunda auto-satisfação. Essas podem ser características de homens bons que vivem na mesma época e entre conhecidos, mas com freqüência de homens bons de outros tempos, ou, se do mesmo período, de um país distante. A razão é esta: homens bons contemporâneos e da mesma vizinhança são muito sujeitos a ficar intranqüilos quanto aos pecados alheios e a incomodar as pessoas com suas reprovações e repreensões fiéis. Isto os ofende e supera seu respeito natural pela bondade. Mas quem não observou o fato de que homens bons e ruins se unem para louvar, admirar e amar -- segundo me consta -- homens bons de outras épocas ou homens bons que vivem um tanto longe, cujas vidas e repreensões aborreceram os maus em seu bairro? O fato é que os agentes morais, a partir das leis do seu ser, aprovam necessariamente a bondade onde quer que a testemunhem. Multidões de pecadores estão cientes disto e supõem que esse sentimento é virtuoso. É inútil negar que às vezes eles têm sentimentos de amor e gratidão a Deus e de respeito e auto-satisfação nos homens bons. Assim, descrevê-los como sempre a ter sentimentos de ódio e de oposição a Deus e a homens bons é por certo ofendê-los ou levá-los a negar as verdades da religião. Ou, pode levá-los a pensar que são cristãos, por estarem conscientes de que esses sentimentos aos quais são ensinados a crer sejam peculiares aos cristãos. Ou, podem pensar que, embora não sejam cristãos, estão longe de ser totalmente depravados, já que têm tantos desejos e sentimentos bons. Nunca deve ser esquecido que os santos e pecadores podem concordar em opiniões, visões intelectuais e julgamentos. Muitos religiosos -- teme-se -- supõem que a religião consiste em desejos e sentimentos e enganam totalmente o próprio caráter. Na verdade, nada é mais comum do que ouvir que a religião consiste inteiramente em meros sentimentos, desejos e emoções. Os religiosos relatam seus sentimentos e supõem estar explicando sua religião. É infinitamente importante que tanto os religiosos quanto os não-religiosos entendam mais do que a maioria sobre a constituição mental e sobre a verdadeira natureza da religião. Multidões de religiosos têm -- teme-se -- uma esperança fundamentada completamente nos desejos e sentimentos puramente constitucionais e, portanto, comuns a santos e pecadores.

7. Os santos e pecadores estão em acordo de que desaprovam, sentem freqüente repugnância e detestam profundamente o pecado. Eles não podem, senão desaprovar o pecado. A necessidade é colocada em todo agente moral, qualquer que seja seu caráter, pela lei do seu ser para condenar e desaprovar o pecado. E a sensibilidade dos pecadores, como também dos santos, está cheia de profundo desgosto e abominação em vista do pecado. Sei que freqüentes descrições de posturas opostas são feitas. Os pecadores são retratados como se tivessem, universalmente, auto-satisfação no pecado, como se tivessem um anelo constitucional pelo pecado, da mesma forma como têm por comida e bebida. Mas tais descrições são falsas e muito prejudiciais. Elas contradizem a consciência do pecador e o levam ou a negar sua depravação total, ou a negar a Bíblia, ou a pensar que são regenerados. Como já mostramos no assunto da depravação moral, os pecadores não amam o pecado em benefício próprio, contudo anelam outras coisas e estas conduzem ao prazer proibido, o qual é pecado. Mas não é a pecaminosidade do prazer que foi desejada. Tal situação poderia ter produzido desgosto e abominação na sensibilidade, se tivesse sido considerada até mesmo no momento do prazer. Por exemplo: Suponha que um homem licencioso, bêbado, jogador ou com qualquer outra característica má esteja ocupado em seu prazer favorito; imagine que a pecaminosidade desse prazer fosse fortemente estabelecida diante de sua mente pelo Espírito Santo. Ele poderia estar profundamente envergonhado e repugnado consigo mesmo, tanto quanto a sentir grande desprezo de si mesmo e sentir-se quase pronto, se fosse possível, a cuspir na própria face. E, a menos que esse sentimento se torne mais forte do que o desejo e sentimento satisfeitos pela vontade, seu prazer será mantido, apesar do desgosto. Se o sentimento de desgosto, com o tempo, sobrepujar o desejo adversário, o prazer será, temporariamente, abandonado no interesse de satisfazer ou contentar o sentimento de desgosto. Mas isto não é virtude. É só uma mudança na forma de egoísmo. O sentimento ainda governa e não a lei da inteligência. O prazer foi abandonado apenas temporariamente para satisfazer um impulso mais forte da sensibilidade. Claro que a vontade voltará novamente ao prazer, quando os sentimentos de medo, repugnância ou abominação diminuírem. Isto, sem dúvida, é responsável pelas multidões de conversões espúrias, às vezes, testemunhadas. Os pecadores ficam sob convicção, o medo é despertado e o desgosto e a abominação estimulados. Tais sentimentos ficam temporariamente mais fortes do que o desejo pelos prazeres anteriores e, por conseguinte, os pecadores os abandonam por um tempo em obediência, não à lei de Deus ou de sua inteligência, mas em obediência ao medo, repugnância e vergonha. Mas quando a convicção diminui e os sentimentos conseqüentes acabam, esses convertidos espúrios voltam como "o cão voltou ao seu próprio vômito; a porca lavada, ao espojadouro de lama" (2 Pe 2.22). Convém entender de forma distinta que todos esses sentimentos dos quais falei e qualquer classe ou grau de meros sentimentos podem existir na sensibilidade; e mais: que esses ou outros sentimentos podem, por seu turno, controlar a vontade e produzir um curso de vida exterior correspondente e, não obstante, o coração permanecer o tempo todo em estado egoísta, ou em estado de depravação total. É perfeitamente comum ver o pecador impenitente manifestar muito desgosto e oposição ao próprio pecado e ao de terceiros, mas isto não ser o resultado de um princípio em sua vida; é apenas o efeito do sentimento presente. No dia seguinte, ou talvez em uma hora, repetirá o pecado ou fará o que, quando viu nos outros, incendiou sua indignação.

8. Os santos e pecadores aprovam a justiça e nela se deleitam. É comum ver em tribunais de justiça e em várias outras ocasiões pecadores impenitentes manifestarem grande auto-satisfação quando a justiça é administrada e a maior indignação e aversão à injustiça. Este sentimento é às vezes tão forte que não pode ser contido, mas explodirá como um vulcão sufocado e trará desolação diante deles próprios. E a esse amor natural da justiça e a essa aversão natural da injustiça, comuns igualmente a santos e pecadores, que tumultos populares e matança deveriam ser atribuídos. Isto não é virtude, mas egoísmo. E a vontade entregando-se à satisfação de um impulso constitucional. Mas suponhamos que tais sentimentos e condutas sejam virtuosos. É preciso sempre manter em mente que o amor da justiça e o senso de deleite, bem como o sentimento de oposição à injustiça, apesar de serem peculiares aos homens bons, não são evidência de um coração regenerado. Milhares de exemplos poderiam ser citados como prova e ilustração desta posição. Mas tais manifestações são muito comuns para que sejam, necessariamente, citadas e lembradas a qualquer um de sua existência.

9. As mesmas observações podem ser feitas com respeito à verdade. Santos e pecadores têm respeito, aprovação e deleite constitucionais na verdade. Quem jamais soube de um pecador que aprovou o caráter de um mentiroso? Que pecador não se ressentirá de ser acusado ou mesmo suspeito de mentir? Todos os homens manifestam espontaneamente respeito e auto-satisfação na verdade, além de aprovarem-na. Isto é constitucional, de forma que até os maiores mentirosos não amam e não podem amar a mentira em benefício próprio. Eles mentem para satisfazer não um amor pela falsidade em si mesma, mas para obter o objeto que desejam mais fortemente do que odeiam a falsidade. Os pecadores, apesar de si mesmos, veneram, respeitam e temem o homem da verdade. Eles, da mesma maneira, menosprezam necessariamente o mentiroso. Se são mentirosos, também se menosprezam, da mesma maneira que os bêbados e libertinos se menosprezam por favorecer suas luxúrias imundas, não obstante continuarem em sua prática.

10. Os santos e pecadores não só aprovam e se deleitam nos homens bons, mas também concordam em reprovar, desaprovar e detestar os homens perversos e os demônios. Quem jamais ouviu falar de outro sentimento expresso por homens bons ou ruins, a não ser de aversão e indignação pelo diabo? Ninguém jamais aprovou, ou pode aprovar, a partir de seu caráter; os pecadores não podem aprovar a partir de seu caráter mais do que os anjos. Se estes pudessem aprovar e se deleitar em seu próprio caráter, o inferno deixaria de ser inferno e o mal se tornaria seu bem. Mas nenhum agente moral pode conhecer a maldade e aprová-la. Nenhum homem, santo ou pecador, pode nutrir outro sentimento para com o diabo ou com os homens perversos, senão os sentimentos de desaprovação, desconfiança, desrespeito e freqüentemente de abominação e aversão. O sentimento intelectual será uniforme. A desaprovação, a desconfiança, a condenação sempre possuirão necessariamente a mente de todos os que conhecem homens perversos e demônios. E, muitas vezes, quando surge a ocasião em que seu caráter é revelado claramente, e sob circunstâncias favoráveis a tal resultado, os sentimentos mais profundos de desgosto, abominação, indignação e aversão de sua maldade se manifestarão igualmente entre santos e pecadores.

11. Os santos e pecadores podem ser igualmente honestos e justos nos negócios no que diz respeito ao ato externo. Ambos têm razões diferentes para sua conduta, mas exteriormente pode parecer o mesmo. Isto conduz à seguinte observação:

12. Que o egoísmo no pecador e a benevolência no santo podem produzir -- e freqüentemente produzem em muitos aspectos -- os mesmos resultados ou manifestações. Por exemplo: a benevolência no santo e o egoísmo no pecador podem gerar a mesma classe de desejo, a saber, como vimos, desejo por sua própria santificação e pela dos outros, ser útil e fazer com que os outros tenham o mesmo desejo; desejo pela conversão dos pecadores e muitos outros desejos iguais.

13. Isto conduz à observação de que quando os desejos de um impenitente por tais objetos ficam fortes o bastante para influenciar a vontade, ele pode em substância tomar o mesmo curso externo que o santo toma em obediência à sua inteligência. Quer dizer, o pecador é constrangido por seus sentimentos a fazer o que o santo faz por princípio ou por obediência à lei de sua inteligência. Embora as manifestações externas sejam temporariamente as mesmas, quando isto acontece o pecador é totalmente egoísta e o santo, benevolente. O santo é controlado por princípio e o pecador por impulso. Neste caso, é necessário tempo para distinguir entre ambos. O pecador que não tem a raiz daquela prática plantada em si, voltará ao curso anterior de vida na proporção em que suas convicções da verdade e importância da religião diminuírem e seus sentimentos anteriores voltarem; enquanto que o santo evidenciará seu nascimento divino, manifestando sua simpatia por Deus e a força do princípio que tomou posse do seu coração. Quer dizer, manifestará que sua inteligência, e não seus sentimentos, controla a vontade.

Em razão desses desejos semelhantes muitos tropeçaram. Hipócritas agarraram-se a uma falsa esperança e viveram em meros desejos constitucionais e voltas espasmódicas de submissão à vontade, durante os tempos de estímulo especial. Estes espasmos eles chamam de despertamento. Mas no mesmo instante em que seu entusiasmo diminui, então o egoísmo volta às formas costumeiras. É verdadeiramente maravilhoso e apavorante ver a que extensão isto é verdadeiro. Porque, em tempos de estímulo especial, sentem profundamente e estão conscientes do sentimento a tal modo que, por serem completamente sinceros ao seguir seus impulsos, têm a mais plena confiança em seu bom estado. Eles afirmam que não podem duvidar de sua conversão. Eles se sentiam assim e assim e se entregaram aos seus sentimentos e deram muito tempo e dinheiro para promover a causa de Cristo. Esta é uma tremenda ilusão, das mais comuns entre a cristandade, ou no mínimo uma das mais comuns que serão encontradas entre os chamados cristãos avivados. Essa classe de almas iludidas não vê que são, em tais casos, governadas pelos sentimentos e que, se os sentimentos mudaram, claro que sua conduta tem de estar de acordo; que logo que o entusiasmo diminuir, é óbvio, regressarão aos seus antigos caminhos. Quando o estado de sentimento que agora os controla der lugar aos sentimentos anteriores, é claro que parecerão como costumavam fazer. Esta é, em poucas palavras, a história de milhares de adeptos da religião.

Isto tem feito os impenitentes tropeçarem de forma descarada. Não saber responder porque eles vêem esse tipo de pessoa entre os adeptos da religião, leva-os a duvidar se há tal coisa de verdadeira religião.

Muitos pecadores foram enganados exatamente da maneira que mostrei e descobriram depois que foram iludidos, sem conseguir entender como. Eles chegaram à conclusão de que todos estão iludidos e que todos os adeptos estão tão enganados quanto eles. Isto os leva a rejeitar e menosprezar toda a religião.

Alguns exercícios de pecadores impenitentes, e dos quais estão conscientes, foram negados por medo de contestar a depravação total. Eles foram descritos a necessariamente odiar Deus e todos os homens bons; e esse ódio foi retratado como sentimento de malícia e inimizade para com Deus. Muitos pecadores impenitentes estão convictos de não terem tal sentimento; mas, pelo contrário, estão às vezes conscientes de terem sentimentos de respeito, reverência, temor, gratidão e afeto para com Deus e os homens.

Para essa classe de pecadores é armadilha e pedra de tropeço dizer-lhes e insistir que só odeiam Deus, os cristãos, os ministros e o avivamento; e para demonstrar que sua depravação moral é tamanha, afirma-se que anelam o pecado como anelam comida, e que necessariamente não têm nada, senão sentimentos de inimizade mortal contra Deus. Tais afirmações os direcionam ou à infidelidade, por um lado, ou a julgar que são cristãos, por outro. Mas esses teólogos, que sustentam as visões da depravação constitucional da qual falamos, não podem, em coerência com sua teoria, admitir a esses pecadores a verdade real e, depois, mostrar-lhes conclusivamente que não há virtude em todos os sentimentos que chamam de bons, nem no fato de entregarem-se à sua influência; que seus desejos e sentimentos não têm em si caráter moral e que quando entregam a vontade ao controle de tais sentimentos, isto é só egoísmo. A coisa necessária é uma filosofia e uma teologia que venham a admitir e explicar todos os fenômenos da experiência e não a negar a consciência humana. Uma teologia que nega a consciência humana é apenas uma maldição e uma pedra de tropeço. Mas esta é a doutrina da depravação moral constitucional universal.

E verdade que os sentimentos dos pecadores tornam-se excessivamente rebeldes e exasperados, até à mais intensa oposição do sentimento para com Deus, Cristo, os ministros e o avivamento, e para com tudo de boa reputação. Se essa classe de pecadores é convertida, eles estão bem aptos a supor e descrever que todos os pecadores têm tais sentimentos como tiveram. Mas isto é engano, pois muitos pecadores nunca tiveram tais sentimentos. Não obstante, não são menos egoístas e culpados do que a classe que tem os sentimentos rebeldes e blasfemos que mencionei. É isto o que precisam saber. Eles precisam definitivamente entender o que é pecado e o que não é; que pecado é egoísmo; que é egoísta a entrega da vontade ao controle do sentimento e que não importa que tipo de classe particular de sentimentos seja -- se os sentimentos controlam a vontade e não a inteligência. Admita seus bons sentimentos, como eles os chamam, e se esmere em mostrar que esses sentimentos são meramente constitucionais e não têm em si caráter moral.

As idéias da depravação e da regeneração, às quais aludi muitas vezes, estão imbuídas de grande dano em outro aspecto. Teme-se que muitos adeptos particulares de religião e de ministros têm interpretado mal a classe de sentimentos dos quais falei como comum entre certos impenitentes. Eles ouviram as habituais descrições da depravação natural dos pecadores e também ouviram sobre certos desejos e sentimentos serem representados como religião. Eles estão conscientes desses desejos e sentimentos, até mesmo quando, às vezes, são muito fortes para influenciarem sua conduta. Assim, presumem que são regenerados, eleitos e herdeiros da salvação. Estas visões os acalmam em seu sono. A filosofia e teologia, que falsificam dessa maneira a depravação moral e a regeneração, devem, seguindo a coerência, também falsificar a verdadeira religião; e os muitos milhares que interpretaram mal os meros desejos e sentimentos constitucionais, e a entrega egoísta da vontade ao controle desses sentimentos, como se fossem a verdadeira religião, foram ao tribunal de Deus com uma mentira na mão direita!

Outro grande mal adveio das falsas visões que expus, a saber:

Muitos verdadeiros cristãos tropeçaram e foram mantidos em escravidão e privados do seu consolo e utilidade, achando-se, de vez em quando, muito lânguidos e insensíveis. Ao supor que a religião consiste em sentimento, se a qualquer tempo a sensibilidade é exaurida e os sentimentos diminuídos, são lançados imediatamente na incredulidade e escravidão. Satanás lhes reprova o desejo do sentimento e não têm nada a dizer, só admitir a verdade das acusações. Tendo uma falsa filosofia de religião, julgam o estado do coração pelo estado dos sentimentos. Confundem o coração com os sentimentos e estão em perplexidade quase constante em manter o coração certo, pelo que querem dizer os sentimentos em um estado de grande entusiasmo.

Tais cristãos não só são às vezes lânguidos e sem sentimentos e desejos piedosos, mas outras vezes estão conscientes da classe de emoções que chamam de pecado. Eles resistem a estes, mas ainda se culpam por tê-los no coração, segundo dizem. Assim são postos novamente em escravidão, embora estejam certos de que esses sentimentos sejam odiados e não sejam absolutamente favorecidos.

Como todas essas classes de pessoas precisam ter idéias claramente definidas do que realmente constitui pecado e santidade! Uma falsa filosofia da mente, especialmente da vontade e da depravação moral, cobriu o mundo com trevas espessas sobre o assunto do pecado e da santidade, da regeneração e das evidências da regeneração, até que os verdadeiros santos, por um lado, são mantidos em trevas constantes em suas falsas noções e, por outro, a igreja enxameia com adeptos não-convertidos e é amaldiçoada com muitos ministros que se enganam a si mesmos.

 

Em que os santos e os pecadores diferem.

1. Que seja claramente lembrado que todos os não-regenerados, sem exceção, têm coração egoísta. Este é o seu caráter inteiro. Eles são universalmente e apenas dedicados à auto-satisfação. Seu coração não-regenerado consiste nessa disposição egoísta ou nessa escolha egoísta. Essa escolha é o fundamento e a razão de todas as suas atividades. Uma e a mesma razão última os move em tudo o que fazem e em tudo o que omitem, e essa é a razão, presentemente ou remotamente, diretamente ou indiretamente, para se satisfazerem a si mesmos.

2. O coração regenerado é benevolência desinteressada. Em outras palavras, é amor a Deus e ao próximo. Todos os corações regenerados são precisamente semelhantes. Todos os verdadeiros santos, sempre que têm verdadeiramente o coração dos santos de Deus, são movidos por um e o mesmo motivo. Eles têm somente uma razão última para tudo o que fazem, sofrem ou omitem. Têm uma intenção última, um fim. Vivem para um e o mesmo objeto, e esse é o mesmo fim para o qual Deus vive.

3. O santo é governado pela razão, pela lei de Deus ou pela lei moral. Em outras palavras, a lei da benevolência desinteressada e universal é a sua lei. Essa lei não só é revelada e desenvolvida na inteligência, mas é escrita no coração. De forma que a lei do intelecto é a lei do coração. O santo não apenas vê e reconhece o que deve fazer e ser, mas está consciente de si mesmo e dá evidência disso aos outros, quer recebam e sejam convencidos, quer não, de que seu coração, vontade ou intenção estão conformados às convicções do dever. Ele vê o caminho do dever e o segue. Ele sabe o que deve querer, intentar e o faz. Ele está consciente disso. E disto outros podem estar satisfeitos, se observam com caridade e sinceridade.

4. O pecador, por outro lado, contrasta com tal postura nos mais importantes e fundamentais aspectos. Ele não é governado pela razão e pelo princípio, mas por sentimento, desejo e impulso. Às vezes os sentimentos coincidem com a inteligência e por vezes não. Mas quando coincidem, a vontade não busca seu curso por respeito ou em obediência à lei da inteligência, mas em obediência ao impulso da sensibilidade que, temporariamente, impele na mesma direção, como o faz a lei da razão. Mas na maior parte os impulsos da sensibilidade o inclinam às satisfações mundanas e em direção oposta à qual a inteligência aponta. Isto o leva a um curso de vida muito manifestadamente o oposto da razão, para deixar lugar a dúvidas sobre qual é o seu verdadeiro caráter.

5. O santo é justificado e tem a evidência disto na paz da própria mente. Ele está consciente de obedecer a lei da razão e do amor. Por conseguinte, naturalmente tem esse tipo e grau de paz que flui da harmonia da vontade com a lei da inteligência. Às vezes tem conflitos com os impulsos do sentimento e do desejo. Mas a menos que seja vencido, esses conflitos, embora possam levá-lo a gemer interiormente e talvez de forma audível, não interrompem a paz. Ainda há os elementos da paz interior. O coração e a consciência estão em comum, e enquanto for assim, o santo tem até esse ponto a evidência da justificação dentro de si. Quer dizer, ele sabe que Deus não pode condenar seu estado atual. Consciente como está da conformidade do coração à lei moral, não pode afirmar senão para si mesmo que o Legislador está contente com sua atitude atual. Mais ainda: ele também tem dentro de si o Espírito de Deus que testemunha com seu espírito de que é filho de Deus, perdoado, aceito, adotado. Ele sente o espírito filial que induz o coração a exclamar: Pai, Pai. Ele está consciente de que agrada a Deus e tem o sorriso de Deus de aprovação.

O santo está em paz consigo mesmo, porque afirma que o coração está em uníssono com a lei do amor. A consciência não o censura, mas sorri. A harmonia do próprio ser é testemunha para si de que esse é o estado no qual foi feito para existir. Ele está em paz com Deus, porque ele e Deus estão buscando o mesmo fim e pelos mesmos meios. Não pode haver conflito e controvérsia entre ambos. O santo está em paz com o Universo no sentido de que não tem rancor e sentimento ou desejo malicioso para satisfazer no dano de alguma das criaturas de Deus. Ele não tem medo, senão de pecar contra Deus. Ele não é influenciado, por um lado, pelo medo do inferno, nem, por outro, pela esperança de recompensa. Ele não está ansioso acerca da própria salvação, mas piedosa e calmamente deixa essa questão nas mãos de Deus e só se preocupa em promover a mais sublime glória de Deus e o bem do ser. "Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1). "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito" (Rm 8.1).

6. A experiência do pecador é o oposto. Ele está sob condenação e raramente pode enganar-se tanto assim, mesmo em sua rabugice mais religiosa no que tange a imaginar que tem consciência da aceitação da própria consciência ou de Deus. Quase nunca há momento em que não tenha maior ou menor grau de inquietude e desconfiança interior. Até quando está muito engajado na religião, conforme supõe, ele se acha descontente consigo mesmo. Algo está errado. Há uma luta e uma angústia. Ele pode não ver exatamente onde está e qual é a dificuldade. Afinal de contas, não obedece a razão e a consciência, e não é governado pela lei e vontade de Deus. Não tendo certeza da obediência, sua consciência não sorri. Às vezes sente profundamente e age como se sentisse e estivesse consciente de ser sincero no sentido de sentir o que diz e agir em obediência ao que sente profundamente. Mas isto não lhe satisfaz a consciência. Ele é mais ou menos miserável, no final das contas. Ele não tem paz verdadeira. Ele tem por vezes uma quietude e prazer hipócritas. Mas esta não é paz de consciência, nem paz com Deus. Afinal de contas, o pecador se sente intranqüilo e condenado, apesar de todo o sentimento, zelo e atividade.

Tais sentimentos não são do tipo certo. Conseqüentemente não satisfazem a consciência. Não satisfazem as demandas da inteligência. A consciência não aprova. No fim das contas, o pecador não tem a verdadeira paz. Ele não é justificado; não pode estar completa e permanentemente satisfeito com o que é.

7. Os santos são interessados e se simpatizam com todo esforço em reformar o gênero humano e promover os interesses da verdade e da justiça na terra. O bem do ser é o fim para o qual o santo real e verdadeiramente vive. Isto não é meramente defendido por ele como teoria, opinião, especulação teológica ou filosófica. Está em seu coração, e é precisamente por essa razão que ele é santo. Ele é santo só porque a teoria, que está alojada na cabeça do santo e do pecador, também está no coração, onde tem poder reinante e, por conseguinte, na vida.

Como os santos valorizam sumamente o bem maior do ser, eles terão e deverão ter profundo interesse por tudo quanto promove esse fim. Conseqüentemente, seu espírito é necessariamente o do reformador. Eles estão comprometidos com a reforma universal do mundo. Para esse fim, eles se dedicam. Para esse fim, vivem, agem e têm o ser comprometido. Cada reforma proposta os interessa e, naturalmente, os leva a examinar suas asseverações. O fato é que estão estudando e buscando modos e meios de converter, santificar e reformar o gênero humano. Estando nesse estado de mente, eles são predispostos a agarrar tudo o que dá promessa de bem aos homens. Os verdadeiros santos amam a reforma. É seu negócio, profissão e vida promovê-la. Por conseguinte, estão prontos a examinar as afirmações de toda reforma proposta; sinceros, abnegados e prontos a serem convencidos, ainda que muita abnegação lhes seja exigida. Eles rejeitaram a vida regalada como o fim ao qual vivem e estão prontos a sacrificar qualquer forma de satisfação excessiva dos próprios desejos no interesse de promover o bem dos homens e a glória de Deus. O santo está verdadeiramente muito desejoso e decidido a reformar todo o pecado do mundo, e só por essa razão está pronto a gritar de alegria e tentar qualquer reforma que pareça, sob a melhor luz que possua, indicar a possibilidade de vencer o pecado e os males que estão no mundo. Mesmo homens equivocados que honestamente empreendem esforços para reformar o gênero humano e negam os apetites, como muitos fazem na reforma dietética, merecem o respeito dos membros da raça humana. Suponha que sua filosofia esteja incorreta, contudo são bem intencionados. Eles manifestaram a disposição de negarem a si mesmos com a finalidade de promover o bem dos outros. Eles foram honestos e zelosos nisto. Nenhum verdadeiro santo pode sentir ou expressar desprezo por tais reformadores, não importando o quão enganados estejam. Não: os sentimentos e impressões naturais serão e deverão ser o contrário do desprezo ou censura a respeito de tais pessoas. Se o engano delas foi prejudicial, os santos podem lamentar sobre o mal, mas não irão e não poderão julgar severamente o reformador honesto. Guerra, escravidão, licenciosidade e todos esses tipos de males e abominações são necessariamente considerados pelos santos como males grandes e doloridos, e eles almejam por sua destruição completa. É impossível que a mente verdadeiramente benevolente não considere assim tais abominações da desolação.

Os santos de todas as eras foram reformadores. Afirma-se -- bem o sei -- que nenhum profeta, nem Cristo, nem os apóstolos, nem os santos e mártires primitivos clamaram contra a guerra e a escravidão etc. Mas eles o fizeram. O todo das instruções de Cristo, dos apóstolos e profetas foi diretamente oposto a esses e todos os outros males. Se não saíram contra certas formas legalizadas de pecado, e não denunciou-as por nome, nem empreenderam formar sentimento público contra elas, é porque foram claramente, em grande parte, empregados em trabalho preliminar. Introduzir o Evangelho como revelação divina; estabelecer e organizar na terra o Reino visível de Deus; pôr um fundamento para a reforma universal eram, preferencialmente, o seu negócio ao invés de promover ramos particulares da reforma. A destruição da idolatria estatal, o grande e universal pecado do mundo naquela era; o trabalho de fazer com que o mundo e os governos da terra tolerassem e recebessem o Evangelho como revelação do único Deus vivente e verdadeiro; a controvérsia com os judeus para destruir suas objeções ao cristianismo; em suma, o grande, indispensável e preliminar trabalho de ganhar o ouvinte para Cristo e o Evangelho, bem como ter-lhe o reconhecimento da divindade de Cristo, eram, antes de mais nada, o trabalho daqueles homens em vez de promover determinados preceitos e doutrinas do Evangelho a seus resultados legítimos e conseqüências lógicas. Esse trabalho uma vez feito, permitiu que santos mais recentes pudessem fazer com que as verdades, os preceitos e doutrinas particulares do bendito Evangelho derrotassem toda forma de pecado. Os profetas, Cristo e os apóstolos não deixaram nas páginas da inspiração testemunho duvidoso contra toda forma de pecado. O espírito de toda a Bíblia exala de todas as suas páginas a dinamite que aniquila toda abominação profana, enquanto sorri de toda boa notícia que promete bênçãos aos homens e glória a Deus. O santo não é, às vezes, um mero reformador; ele sempre o é.

8. O pecador nunca é reformador no sentido formal da palavra. Ele é egoísta e nunca se opõe ao pecado ou a algum mal pelo motivo de torná-lo merecedor do nome de reformador. Ele às vezes defende e propõe egoisticamente certas reformas externas, mas tão certo quanto é pecador não-regenerado, tão certo é que não está empreendendo reformar o pecado do mundo mediante qualquer amor desinteressado a Deus ou aos homens. Muitas considerações de natureza egoísta podem engajá-lo, às vezes, em certos ramos da reforma. Considerações à sua reputação podem instigar o zelo a tal empreendimento. Considerações hipócritas também podem levá-lo a se alistar no exército de reformadores. Sua relação com formas particulares de vício pode influenciá-lo a se voltar contra elas. O temperamento e tendências constitucionais podem levá-lo a se engajar em certas reformas. Por exemplo, sua benevolência constitucional, como os frenologistas o chamam, pode ser tal que por compaixão natural se engaje nas reformas. Mas isto só está abrindo caminho a um impulso da sensibilidade do pecador e não é o princípio que o governa. A consciência natural pode modificar o caráter externo e levá-lo a assumir alguns ramos da reforma. Mas, mesmo à luz de quaisquer outros motivos que possa ter, é certo que não é reformador; porque é absurdo dizer que um pecador esteja verdadeiramente engajado a se opor ao pecado como pecado. Não, não é ao pecado que se está opondo, mas buscando satisfazer um espírito ambicioso, hipócrita ou de outro tipo, cuja satisfação é egoísmo.

Mas como coisa geral, é fácil distinguir os pecadores ou adeptos equivocados dos santos, olhando firmemente no seu temperamento e comportamento relacionai com a reforma. Eles são amantes da boa vida e só pela razão de que são dedicados à vida regalada. Às vezes, o espírito da vida regalada assume um tipo e, às vezes, outro. Claro que não é necessário esperar que ridicularizem ou se oponham contra todo ramo de reforma, só porque não é todo reformador que reprovará seus prazeres favoritos e exigirá que reformem a vida. Mas como todo pecador tem uma ou outra forma particular de prazer ao qual se ajusta, e como os santos estão inventando e promovendo reformas em todas as direções, é natural que alguns pecadores manifestem hostilidade particular por uma ou outra reforma. Sempre que uma reforma é proposta a qual os reformaria de seus prazeres favoritos, eles ou a ridicularizarão e aos que a propõem, ou esbravecerão e xingarão, ou de algum modo se oporão ou completamente a negligenciarão. Não é assim, e não pode ser, com o verdadeiro santo. Não há prazer que valorize, quando posto em disputa com o bem do ser. Alem do mais, põe tudo de si e de sua vida à disposição do bem maior. Afinal, ignorando os males que advêm de sua conduta, tem ele servido-se de bebidas fortes, vinho, tabaco, cerveja inglesa ou cerveja preta? Tem ele mantido escravos, estando engajado a qualquer tráfico que descobre ser prejudicial? Tem ele favorecido a guerra pela ignorância; ou, em resumo, cometido algum engano? Que o reformador apareça e proponha discutir a tendência de tais coisas; que o reformador produza suas fortes razões, e, a partir da mesma natureza da verdadeira religião, o santo ouvirá com atenção, avaliará com sinceridade e permitir-se-á ser levado pela verdade, coração, mão e influência da reforma proposta, se for merecedora de apoio, por mais que conflite com seus hábitos anteriores. Isto deve ser verdade, se ele tem bom olho para o bem do ser que é a própria característica do santo.

9. O verdadeiro santo nega a si mesmo. A abnegação deve ser sua característica só pela razão de que a regeneração a implica. A regeneração, como vimos, consiste em voltar o coração ou a vontade da escolha suprema da auto-satisfação à escolha do bem-estar maior de Deus e do Universo. Isto é negar a si mesmo. É abandonar a satisfação excessiva dos próprios desejos e procurar ou comprometer a vontade e o ser inteiro a um fim oposto. E a destronização do ego e a entronização de Deus no coração. A abnegação não consiste, como alguns parecem imaginar, em atos de severidade exterior numa atitude asceta e de fazer penitência de fome, numa mera economia legal e exterior, usando casaco com um botão, e em atos semelhantes de "adoração à vontade e humildade voluntária, negligenciando o corpo". Mas a abnegação consiste na renúncia concreta e total do egoísmo no coração. Consiste em deixar de viver para o ego e poder ser exercitado de forma verdadeira tanto sobre um trono, cercado com a parafernália da realeza, quanto numa cabana de juncos ou vestido em trapos e vivendo em cavernas e covas da terra.

O rei sobre o trono pode viver e reinar para agradar a si mesmo. Ele pode se cercar com tudo o que atende o seu prazer, ambição, orgulho, suas luxúrias e poder. Ele pode viver para si mesmo. O autodeleite, a auto-satisfação, o auto-engrandecimento podem ser o fim para o qual vive. Isto é egoísmo. Mas também pode viver e reinar para Deus e seu povo. Quer dizer, pode ser tão realmente dedicado a Deus e fazê-lo como serviço a Deus, como também qualquer outra coisa. Sem dúvida que sua tentação é grande, mas, apesar disso, pode ser perfeitamente abnegado em tudo. Ele pode não fazer o que faz em benefício próprio, nem ser o que é, nem possuir o que possui em benefício próprio, mas, acomodando seu estado e seus apetrechos com suas relações, pode ser tão verdadeiramente abnegado quanto os outros no mais humilde andar de vida. Isto não é impossível, embora seja, com toda a probabilidade, um caso raro. Um homem pode ser realmente tanto rico como pobre para com Deus. Isso dependerá de que suas relações e circunstâncias tornem essa questão essencial para a sua mais elevada utilidade, mesmo que possua grande capital. Ele está no caminho de grande tentação. Mas se este é claramente o seu dever, e submetido a Deus e ao mundo, pode ter graça para ser completamente abnegado nessas circunstâncias, e ainda mais recomendável, permanecer firme sob tais circunstâncias.

Assim, um pobre pode ser pobre por princípio ou por necessidade. Ele pode ser submisso e feliz em sua pobreza. Ele pode negar até o conforto da vida e fazer tudo para promover o bem do ser, ou pode fazê-lo para promover o seu próprio interesse, temporal ou eterno, em garantir uma reputação por devoção, a fim de satisfazer uma consciência mórbida, contentar seus medos ou garantir o favor de Deus. Em tudo isso pode ser egoísta. Ele pode ser feliz, porque pode ser real abnegação. Ou pode murmurar de sua pobreza, reclamar e invejar os outros que não são pobres. Ele pode ser crítico e pensar que todos os que se vestem melhor ou possuem uma casa e apetrechos melhores são orgulhosos e egoístas. Ele pode estabelecer seus pontos de vista como padrão e denunciar como orgulhosos e egoístas todos os que não se ajustam à vida por suas regras. Isto é egoísmo e essas manifestações demonstram o fato. Um homem pode privar-se do uso de um casaco, ou de um capote, ou de um cavalo, ou de uma carruagem, ou de qualquer e todo conforto e conveniência da vida, e isto pode ser proveniente ou de um estado benevolente ou de um estado egoísta da mente. Se for benevolência e verdadeira abnegação, se submeterá com alegria e felicidade, sem murmuração e queixa, sem crítica e sem inveja dos outros, sem insistir que os outros farão e serão só o que ele faz e é. Ele permitirá ao juiz suas funções de juiz, ao rei suas batas de estado, ao comerciante seu capital, ao agricultor seus campos e rebanhos, e verá a racionalidade e propriedade de tudo.

Mas se for egoísmo e o espírito de auto-satisfação em vez de abnegação, ele será ascético, cáustico, azedo, rabugento, infeliz, severo, crítico, invejoso e disposto a reclamar e escarafunchar a extravagância e a vida regalada dos outros.

O verdadeiro santo nega seus apetites e paixões. Ele nega absolutamente os apetites artificiais, sempre que sua atenção é chamada para o fato e a natureza da satisfação excessiva dos próprios desejos. O cristão é justo, porque se tornou o senhor dos apetites e paixões, negou-os e se consagrou a Deus. O pecador é pecador, porque os apetites, paixões e impulsos dos seus desejos são seus senhores, e ele se curva diante deles e os serve. Eles são seus senhores em vez de serem seus escravos, como foram feitos a ser. O pecador é consagrado aos apetites e paixões e não a Deus. Mas o santo deixou de viver para satisfazer as luxúrias. Foi ele bêbado, farrista, usuário de tabaco? Tinha ele hábitos de vida regalada de qualquer tipo? Ele está reformado: as coisas velhas já se passaram e eis que tudo se fez novo. Tem ele ainda algum hábito cujo caráter ou interpretou mal ou não considerou; como fumar, mascar fumo ou inalar tabaco, usar estimulantes prejudiciais de qualquer tipo, estilo de vida luxuoso e nocivo, vestidura ou apetrechos extravagantes e insalubres, costume de dormir tarde e se levantar tarde, comer muito ou entre as refeições, ou, em suma, há alguma forma de vida regalada nele? Basta que sua atenção seja chamada para que ouça com sinceridade, seja convencido por evidência razoável e renuncie os hábitos maus sem conferir com carne e sangue. Tudo isso está implícito na regeneração e tem de se seguir de sua própria natureza. Isto a Bíblia também afirma ser verdade a respeito dos santos. "E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências" (Gl 5.24). Para sempre deve ser lembrado que um cristão amante da vida regalada é uma contradição. A vida regalada e o cristianismo são termos opostos.

10. O pecador não nega a si mesmo. Ele pode não satisfazer todos os seus desejos, porque os desejos são muitas vezes contraditórios, e tem de negar um para favorecer o outro. A avareza pode ser tão forte que impede seu prazer na extravagância de comer, beber, vestir-se ou ter apetrechos. Seu amor pela reputação pode ser tão forte que evita engajar-se em qualquer coisa infame e assim por diante. Mas a vida regalada é, não obstante, sua lei. O medo do inferno ou o desejo de ser salvo pode proibir seu prazer exterior de qualquer pecado conhecido. Mas ele ainda vive, age e tem o seu ser apenas visando favorecer-se. Ele pode ser avaro, passar fome e frio, e negar as necessidades da vida; não obstante, sua satisfação excessiva aos próprios desejos é a lei. Algumas luxúrias pode e tem de controlar, assim como podem ser incompatíveis com outras. Mas outras não controla. Ele é escravo e se curva às suas luxúrias e as serve. Ele é escravizado por suas propensões, de forma que não pode vencê-las. Isto demonstra que é pecador e não está regenerado, qualquer que seja seu estado e profissão de fé. Aquele que não pode, porque não quer, vencer a si mesmo e às suas luxúrias -- esta é a definição de um pecador não-regenerado. Ele é alguém sobre quem alguma forma de desejo, apetite ou paixão tem domínio. Ele não pode ou, antes, não quer vencer. Tal indivíduo está tão certamente em pecado quanto o pecado é pecado.

11. A alma verdadeiramente regenerada vence o pecado.

Vamos ouvir a Bíblia sobre este assunto. "E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu conheço-o e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade" (1 João 2.3,4). "E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro. Qualquer que comete o pecado também comete iniqüidade, porque o pecado é iniqüidade. E bem sabeis que ele se manifestou para tirar os nossos pecados; e nele não há pecado. Qualquer que permanece nele não peca; qualquer que peca não o viu nem o conheceu. Filhinhos, ninguém vos engane. Quem pratica justiça é justo, assim como ele é justo.

Quem comete o pecado é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio. Para isto o Filho de Deus se manifestou: para desfazer as obras do diabo. Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus. Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: qualquer que não pratica a justiça e não ama a seu irmão não é de Deus" (1 Jo 3.3-10). "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos. Porque esta é a caridade de Deus: que guardemos os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são pesados. Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (1 Jo 5.1-4).

Estas passagens, entendidas ao pé da letra, não só ensinariam que todas as almas regeneradas vencem e vivem sem pecado, mas também que o pecado lhes é impossível. Esta última circunstância, como também outras partes das Escrituras, nos proíbe que entendamos ao pé da letra esta linguagem forte. Mas deve ser entendido e admitido que vencer o pecado é a regra de todo aquele que nasce de Deus, e que o pecado é a exceção; que o regenerado vive habitualmente sem pecado e cai em pecado somente de tempo em tempo, muito poucas vezes e distantes entre si, que na linguagem forte pode ser dito com verdade que não pecam. Este é, seguramente, o que pode estar dizendo o espírito desses textos, não ao pé da letra. E isto é consistente de forma precisa com muitas outras passagens das Escrituras, diversas das quais citei, como estas: "Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo" (2 Co 5.17). "Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura" (Gl 6.15). "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8.1-4). "Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça seja mais abundante? De modo nenhum! Nós que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele? Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição; sabendo isto: que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, a fim de que não sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos; sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça" (Rm 6.1-14).

O fato é que se Deus é verdadeiro e a Bíblia é verdadeira, a alma verdadeiramente regenerada vence o mundo, a carne, Satanás e o pecado; ela é vencedora e mais do que vencedora. Ela triunfa sobre a tentação como fato comum, e os triunfos da tentação sobre a alma são tão esparsos entre si que dela se afirma nos oráculos viventes que não peca, não pode pecar. O cristão não é pecador, mas santo. Ele é santificado; uma pessoa santa; um filho de Deus. Se em qualquer tempo é vencido, é apenas para se levantar de novo e logo voltar, como o filho pródigo. "Os passos de um homem bom são confirmados pelo SENHOR, e ele deleita-se no seu caminho. Ainda que caia, não ficará prostrado, pois o SENHOR o sustem com a sua mão" (Sl 37.23,24).

12. O pecador é escravo do pecado. O capítulo sete de Romanos é sua experiência no melhor estado. Quando tem a maior esperança em si e os outros têm a maior esperança de seu bom estado, ele não vai mais longe do que fazer e quebrar resoluções. Sua vida é senão a morte em pecado. Ele não tem a vitória. Ele vê o que é certo, mas não o faz. O pecado é seu senhor, a quem se entrega como escravo para obedecer. Como ele próprio diz, só tenta abandonar o pecado, mas não o abandona no coração. E ainda porque se sente sob convicção e tem desejos e forma resolução de emenda, espera que seja regenerado. Que ilusão horrível! Ficar aquém da convicção com a esperança de que já é cristão! Ai! Quantos já estão no inferno por tropeçarem nessa pedra de tropeço!

13. O tema da regeneração pode informar e, se a pessoa for honesta, tem de saber para qual fim vive. Não há, talvez, nada de que possa estar mais certo do que acerca de seu estado regenerado ou não-regenerado. E se a pessoa mantém em mente o que é regeneração, parece que dificilmente pode interpretar mal o próprio caráter quanto a imaginar que é regenerado quando não é. A grande dificuldade que a alma regenerada sente no que tange à sua regeneração e que tem levado muitos a duvidar e se atrapalhar nesse assunto, é que a regeneração foi considerada pertencente à sensibilidade e, conseqüentemente, atenção foi dirigida aos sentimentos sempre flutuantes em busca de evidência da mudança. Não admira que isto tenha conduzido almas conscienciosas à dúvida e confusão. Mas que o tema da regeneração seja libertado de falsa filosofia e que seja sabido que o coração novo consiste em suprema benevolência desinteressada, ou em consagração plena a Deus, e então quem não pode saber para que fim vive, ou qual é a preferência ou intenção suprema da alma? Se os homens podem levantar questão além de toda a dúvida, apelando à consciência, parece que esta deva ser a questão. Conseqüentemente, a Bíblia ordena como dever imperativo conhecer-nos se somos cristãos. Temos de conhecer uns aos outros pelos frutos. Isto é expressamente determinado na Bíblia como regra de julgamento no caso. A questão não é tanto: "Quais são as opiniões dos homens?", mas: "Para que o homem vive?" Ele manifesta um estado caridoso de mente? Ele manifesta os atributos da benevolência nas várias circunstâncias em que é colocado? A loucura de julgar os homens mais por suas opiniões e sentimentos deve acabar pelo teor de sua vida? Parece difícil libertar os homens do preconceito de que a religião consiste em sentimentos e em experiências nas quais são completamente passivos. Por conseguinte, são continuamente propensos à ilusão na mais importante questão de todas. Nada pode quebrar esse encanto, senão a persuasão firme e completa da verdade com respeito à natureza da regeneração.  

 

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